FÓRUM SOCIAL MUNDIAL – uma conspiração a nosso favor

O Fórum Social Mundial na cidade negra de Salvador foi um sucesso! Esta foi a síntese que os componentes do Coletivo Brasileiro e membros do Conselho Internacional chegaram em seu balanço, mal haviam se encerrado as múltiplas atividades e a profusão de convergências e encaminhamentos expostos um tanto anarquicamente, como numa grande feira que foi a Ágora dos Futuros, em meio ao cortejo festivo de encerramento da 13ª edição do Fórum Social Mundial.

Muito se deve à determinação do Coletivo Baiano do FSM que, ao lado de sua trajetória de permanência na construção de fóruns regionais e seminários internacionais e a cumplicidade de algumas lideranças e organizações de peso no seio do seu Conselho Internacional, soube angariar legitimidade, superar ceticismos, mas que também a seu favor, pode contar desde o início com a adesão de uma grande universidade pública que lhe desse o lastro cultural e territorial.

Foi dessa incipiente aliança e o orgulho de um centro histórico como a maior cidade negra fora da África, e no coração do Nordeste – porção mais empobrecida do país, é que nasceu a semente do fórum, uma aposta que esperava contar como contou com a força dos orixás e de todos os santos, e a sabedoria política de encantar e transitar na diversidade em tempos de resistência.

Já na declaração de intenção, o Coletivo Baiano sustentava que “O mundo enfrenta uma crise sem precedentes de múltiplas dimensões, entre outras, uma crise econômica, ambiental, política e social. As mudanças climáticas ameaçam a integridade dos ecossistemas e a sobrevivência das populações. A financeirização crescente da economia provocou o aumento das desigualdades em um patamar jamais atingido. Na maioria dos países, políticas de austeridade e de ajuste estrutural foram impostas para as populações, tendo como principais vítimas as pessoas mais vulneráveis”. A situação de golpe no Brasil e as ameaças que pairam em toda a América Latina, bem como o contexto de guerras e falsas soluções de combate ao terror provocando multidões de refugiados, também foram lembrados como elementos de urgência de resposta contrahegemônica que um fórum poderia dar.

“Resistir é criar, resistir é transformar!”

Entre as diferenças importantes no ambiente do FSM, é que as primeiras edições realizadas em Porta Alegre, foram protagonizadas por homens, brancos, europeus ou latino-americanos, quase todos intelectuais de esquerda que denunciavam o sistema capitalista e o neoliberalismo e, defendiam então, um outro protagonismo necessário dos movimentos sociais. Em 2016, este desejo concretizou-se através de uma intensa participação de protagonismo das mulheres, autodenominada de ‘primavera feminina’, dos vários movimentos do povo negro e da juventude brasileira, latino-americana e internacional. Este novo momento traz consigo toda a diversidade das lutas urbanas, ecológicas, das lutas contra os feminicídios, contra o extermínio da juventude negra, em defesa dos direitos sociais no mundo. E este foi o caldo político, cultural e emocional que preparou as condições de um fórum na Bahia, em meio às incertezas e parcos recursos. Infelizmente, antigos contenciosos no âmbito internacional desmotivaram o protagonismo de algumas vertentes importantes do movimento social, o que daria ainda maior destaque e incidência na correlação de forças num contexto de ofensiva neoliberal no mundo e no Brasil. Ainda assim, o Fórum Social Mundial, antecedido por encontros, seminários e eventos preparatórios, aconteceu entre os dias 13 e 17 de março com inegável sucesso e, nem de longe, se poderia insinuar algum domínio das ONGs, diluídas na espontaneidade dos movimentos.

Alguns números evidenciam fatos, acontecimentos, performances, cuja criatividade e explosão de sons, palavras e cores, felizmente escaparam ao script dos organizadores. Ao mesmo tempo havia certa angústia no ar, a indagação de saber em que medida o Fórum Social Mundial dialogava com a cidade. Afinal, a mídia institucionalizada, a despeito de coletivas, deu pouco importância e não repercutiu o fórum como faz, por exemplo, nas atividades patrocinadas do grande carnaval baiano. Talvez fosse pedir demais, enquanto os militantes e voluntários corriam atrás, através de panfletagens e performances em lugares estratégicos. Por iniciativa de grupos locais, um Trem Temático Cultural seguiu enfeitado em direção ao Subúrbio, convocando a população nas estações a ocuparem os territórios do fórum.

O balanço realizado pelo Grupo Facilitador (GF) fala por si: 80.000 pessoas e 6.000 organizações circularam nos 70 territórios em que o fórum se estruturou, tendo como epicentro o Campus da UFBA, em Ondina, contando com a participação de 120 países dos 5 continentes e, claro, predominância do Brasil e mais de 6.000 estrangeiros, 3.800 latinoamericanos, 1.000 africanos, 600 vindos da Europa, 450 da América do Norte e um número mais modesto da Ásia e Oceania. Outros pontos destacados foi a UNEB, cujos eventos atraíram mais de 2000 pessoas, com ênfase nas atividades do povo de santo e outras manifestações da negritude.

A grande abertura do fórum, aconteceu na tarde do dia 13, antecipado pela bela sessão da UFBA no fórum, quando renderam homenagens à ciência e à cultura, ao diplomar os decanos cientistas Zilton e Sonia Andrade e a arte sagrada do mestre Didi. Pelo menos 60 mil pessoas percorreram o clássico percurso da resistência entre o Campo Grande e Praça Castro Alves – uma profusão de cores e ritmos, discursos e cantos. A cidade, enfim, parou e tomou conhecimento de que aqui acontecia algo diferente, espontâneo, popular.

A força do movimento de mulheres e feministas se espalhou pelos territórios, com destaque para sua Assembleia Mundial, na praça do Terreiro Jesus, centro histórico de Salvador, palco de enfrentamentos e do presente, com mais de 8.000 participantes, dominantemente mulheres espalhadas pelas tendas coloridas, quando firmaram um decálogo inegociável de lutas e direitos.

Nas atividades do fórum, o registro de 2.100 atividades inscritas, entre oficinas, grandes reuniões de convergência e manifestações culturais espalhadas em salas, auditórios e diferentes tendas e seus nomes emblemáticos – Direitos Humanos, Casa Comum, Chico Mendes, Irmã Dorothy, Luis Melodia, Perseu Abramo, Marcus Vinicius, Aurélio Garcia, dos Novos Paradigmas, das Convergências Agroecológicas. Todo o território de Ondina fervia, com manifestações, performances, fanfarras, pequenas e grandes conferências e tribunais, em meio a intenso comércio de artesanatos, especialmente das populações tradicionais, publicações cartazes e obras de arte – a economia solidária estruturada nos produtos e na praça de alimentação. O destaque de públicos, em primeiro lugar as mulheres e a população negra, juventudes, movimento hip hop, movimentos LGBTqi, artistas, populações tradicionais com muitos pescadores e pescadoras. Nos demais territórios, a destacar o Acampamento Mundial da Juventude, no Centro de Exposições, com 2.000 participantes e o acampamento dos povos indígenas, nas áreas verdes da Assembleia Legislativa, com mais de 20 nações representadas – especialmente da Bahia, mas também da Amazônia, Colômbia e América do Norte.

Rajadas no ar

Alto astral no Fórum Social Mundial, no primeiro dia efetivo do início das atividades, já evidenciava que a organização havia funcionado, isso apesar do susto sofrido dias antes quando muitas salas a auditórios foram tomadas por um imprevisto apagão. O GF, em especial seu núcleo dirigente, arrancava forças para superar mais este obstáculo, reorganizando os espaços para o desespero dos que promoviam suas atividades, ávidos de informação para divulgá-las através de ‘mosquitos’ e baners virtuais no zap, no tempo quase real do berimbau. Mas na noite deste dia, tiros de fuzil com balas privativas da Policia Federal ceifou a vida de Marielle Franco, vereadora do PSOL, militante negra da favela da Maré, no Rio, e do motorista Anderson Gomes, que prestava um serviço de olho no novo emprego que teria no início de abril como mecânico de uma empresa aérea. O plano de Marielle era viajar no dia seguinte para incidir no Fórum Social. Um luto tomou conta da vida do fórum naquela calorenta manhã.

Entre as atividades em que CESE ajudou a coordenar, estava o Painel Ecumênico, previsto para acontecer no Instituto Social da Bahia, para 500 pessoas: As igrejas na resistência aos cenários de golpe na América Latina – uma leitura crítica para “animar a fé e manter acesa a chama”. Entre os painelistas figurava o pastor batista Henrique Vieira, da Frente Evangélica pelo Estado de Direito, um jovem pastor que vem se destacando nas redes sociais por sua comunicação carismática e profética na defesa de uma nova igreja a serviço dos pobres. Mal chegara no aeroporto, à noite, recebeu a notícia do assassinado de Marielle que era sua amiga muito próxima. Aos prantos comunicou à CESE que voltava para o Rio.

Ainda pela manhã teve uma passeata no entorno do campus de Ondina e manifestações se multiplicaram pelo Brasil e mundo afora. Foi uma afronta absurda, a par das mortes diárias contra populações e lideranças menos conhecidas no Brasil profundo. Desta vez acertaram um alvo fácil, frágil, num grande centro urbano contra uma jovem liderança negra, militante de direitos humanos que, entre outras funções, tinha a de acompanhar casos de morte de policiais e apoio às famílias. Um recado, certamente das milícias, à intervenção militar, às lideranças da Maré, aos defensores de direitos humanos, aos movimentos nas favelas, aos partidos democráticos, aos parlamentares íntegros e aos que lutam contra a impunidade e pelo estado de direito.   Um tiro numa militante cheia de vitalidade e energia. Com o auditório do ISBA lotado, o Painel Ecumênico foi um ato comovente de enorme compulsão e fraternidade com sua imagem projetada, linda, energética com sua elegante jaqueta de couro – A luta continua, companheira! Por você, por nós. Marielle presente!

A CESE no fórum

Além do grande evento que foi o Painel Ecumênico, a CESE liderou ou contribuiu na celebração interreligiosa por ocasião da abertura do Fórum Mundial de Teologia e Libertação, marcou o início das atividades dos seus 45 anos durante a abertura do Fórum Social Mundial e, ainda, com a realização de 6 rodas de diálogo e 2 seminários em múltiplos temas, sobre a relevância das missões ecumênicas, o desafio de uma nova agenda de Direitos Humanos, abrangendo questões emergenciais como água, mineração e segurança alimentar; as questões da democracia, luta por direitos X desigualdades; a justiça  socioambiental frente à mineração, água e povos tradicionais, os custos humanos e ambientais decorrentes; a violência institucional, feminicídios, o extermínio da juventude negra e o encarceramento em massa; o protagonismo das mulheres negras e populares no Nordeste. Por fim, promoveu o lançamento de duas publicações – uma sobre elas e o relançamento da histórica Cartilha dos Direitos Humanos, atualizada na forma e conteúdo, marcando os 45 anos da CESE e 70 anos da Declaração Universal.

Ademais, a CESE representou o Coletivo Brasileiro, na assinatura do Termo de Cooperação do FSM com a UFBA, responsabilizando-se pelo monitoramento e cuidados operacionais, físicos e políticos à sua plena realização. A equipe e colaboradores se jogaram por inteiro nesta densa e concreta utopia que é o Fórum Social Mundial.

O governo impopular há de passar, como o Fórum passou por nós e deixou sementes de esperança.

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