Sem democracia não há Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional

Carta Política
8º Encontro Nacional do FBSSAN – Fórum Brasileiro Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional

Como (não) falar de comida de verdade se a fome está de volta?

O Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) celebrou duas décadas de atuação ininterrupta e vigorosa com a realização de seu 8o Encontro Nacional, entre os dias 12 a 14 de novembro de 2018, no Rio de Janeiro. Estavam presentes cerca de 80 representantes de organizações e movimentos da sociedade civil e ativistas, que expressam a diversidade de grupos sociais de todas as regiões do país. A definição de eixos prioritários e estratégias de ação na luta pela promoção da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) e garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), se deu num contexto de graves ataques aos direitos sociais e à democracia no Brasil. Estamos confrontados com possibilidades reais de retrocessos e ampliação da violência, acompanhados da criminalização de movimentos sociais e do cerceamento do exercício da crítica. Encontra-se aí a enganosa perspectiva de despolitização da política ou de negá-la diretamente.

O aumento da extrema pobreza é visível e confirmado pelos dados oficiais. Uma austeridade fiscal desigual nos seus impactos, e amplamente contestada, tem agravado o desemprego e levado ao desmonte, ou esvaziamento, de programas públicos nos campos da alimentação e nutrição. Esse desmonte de políticas é especialmente grave naquelas destinadas à agricultura familiar e camponesa e aos
povos e comunidades tradicionais. No entanto, são eles os responsáveis por produzir a maior quantidade e diversidade do alimento que chega nas mesas de brasileiras e brasileiros e desenvolver práticas de conservação ambiental.

Os participantes do Encontro Nacional deliberaram que o FBSSAN deve se engajar em defesa da democracia junto aos milhões de brasileiras e brasileiros, que demonstraram estar cientes e dispostos a resistir às ameaças já bastante visíveis de recrudescimento do autoritarismo. Com a legitimidade conferida pela ampla rede de atores sociais que articula e, por seu próprio histórico, o Fórum renova seu compromisso de fortalecer as lutas gerais da sociedade brasileira por democracia e liberdade de expressão e manifestação.

Defende, ao mesmo tempo, a incorporação de suas causas na agenda geral pela certeza do lugar estratégico ocupado pela Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional na construção de uma sociedade democrática mais justa, saudável e respeitosa da sua diversidade. Faz parte desse engajamento alertar – com profundo sentimento de indignação – que os históricos desafios à SSAN e o DHAA serão agravados em face da possibilidade real de voltarmos à vergonhosa condição de país integrante do Mapa da Fome das Nações Unidas. Condição da qual saímos em 2014, fruto de um conjunto de políticas públicas e de um intenso processo de mobilização social.

Os debates do Encontro evidenciaram os fatores promotores de desigualdade social e iniquidades na estruturação e funcionamento dos sistemas alimentares dominantes com relação ao acesso à terra, à água e aos territórios, no controle das sementes e no processamento e comércio dos alimentos. Fortes desigualdades de gênero e étnico-raciais, marcas da sociedade brasileira, estão presentes tanto nos
sistemas alimentares quanto nas repercussões dos modelos dominantes em termos socioambientais e de saúde humana.

Outro fator determinante é o poder que desfrutam as grandes corporações multinacionais nos setores das sementes, insumos, processamento, pesquisas, e comercialização de alimentos, portanto, na definição do que se produz e consome
de um modo que compromete a soberania alimentar dos povos. Isso tem levado ao empobrecimento e padronização das práticas alimentares, à disseminação de conflitos territoriais e monocultivos à base de agrotóxicos e transgênicos.

A atuação desregulada das corporações viola direitos humanos e interfere na democracia. Concentra riqueza e acentua desigualdades. Sobrepõe-se à diversidade e riqueza de hábitos e culturas alimentares historicamente construídas pela sociedade brasileira. A defesa da pluralidade e diversidade é estratégia essencial para o enfrentamento das desigualdades. Sistemas alimentares mais justos, saudáveis e equitativos são viáveis e absolutamente necessários, apoiados na construção de novas relações campo-cidade.

O saber e o fazer tradicionais e dos povos originários são pilares indispensáveis para construir formas de resistência e enfrentamento causados pelos sistemas alimentares geradores de sofrimento, adoecimento, morte e devastação ambiental. Forças desestruturantes de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis vêm sendo impostas por meio dos setores ruralistas, da sanha privatista, da precarização de direitos trabalhistas e da ameaça aos direitos humanos fundamentais como política de Estado.

Após longo período de grande notoriedade internacional e ativa cooperação internacional no campo da SSAN e do DHA, o Brasil praticamente abandonou essa perspectiva, fruto da reorientação de sua política externa. O FBSSAN denuncia mais esse retrocesso e reafirma a disposição de dar continuidade a sua presença nos vários fóruns internacionais de que participa. Compartilharemos experiências e buscaremos apoio e solidariedade internacional face ao desmantelamento das políticas brasileiras e dos riscos do cenário político nacional. O Fórum seguirá fortalecendo iniciativas de articulação latino-americana num momento de desconstrução ideológica dessa região.

O FBSSAN deu importantes contribuições para a participação social na formulação e monitoramento de políticas públicas, como foram o apoio à reconstrução do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e criação dos conselhos Estaduais e Municipais a partir de 2003; a ativa participação na elaboração e aprovação da Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), em 2006; à mobilização social que resultou na inclusão do DHAA na Constituição Federal, em 2010; e na produção de subsídios para propostas de políticas públicas nos campos da alimentação escolar, entre 2008 e 2009; inclusão produtiva com segurança sanitária, em 2013 e vários outros.

O Fórum reafirma a importância dos espaços públicos de participação e controle social construídos por demanda da sociedade e que devem ser reconhecidos e apoiados como instâncias de Estado. Falsas soluções no enfrentamento à fome e que afrontam direitos, como é o caso da “farinata”, voltaram a ser postas em prática na contramão dos princípios consagrados na Lei Orgânica de SAN. O Fórum seguirá se contrapondo a elas, por meio de formas efetivas e capilares de comunicação, falando da comida de verdade, do enfrentamento da fome e da obesidade como temas capazes de promover diálogos sobre democracia, desenvolvimento e estratégias de bem viver.

Temos convicção de que as alianças em torno da alimentação e da comida de verdade, são formas de conexão e de resistência que se fazem pela raiz, como demonstra a exitosa campanha Comida é Patrimônio, iniciada pelo FBSSAN em 2015. As denúncias, alertas e caminhos indicados nesta carta política do 8º Encontro Nacional constituem um chamado à mobilização das entidades e ativistas integrantes da rede do FBSSAN, bem como das entidades e redes parceiras que iremos buscar reunir sob o lema “Sem democracia não há Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional”.

Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2018.