A luta e a resistência das mulheres do Cerrado

II encontro foi espaço de escuta para as mulheres que tiveram situações de violência e empobrecimento agravadas devido à pandemia de Covid-19

 Texto por: Bianca Pyl e Andressa Zumpano

Ao longo desses quase nove meses de pandemia do novo coronavírus, vimos em muitas reportagens que as mulheres são as que mais sofrem as consequência da crise sanitária e econômica. Se somarmos outros marcadores sociais veremos que as opressões são ainda mais sentidas por mulheres no campo, mulheres quilombolas, mulheres indígenas, pescadoras e de outras comunidades tradicionais. Isso porque a situação antes já não era fácil devido às pressões que seus territórios sofrem por conta do interesse do agronegócio e outros empreendimentos do capitalismo.

Pensando nesse agravamento da situação, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, por meio da Articulação de Mulheres do Cerrado, realizou o II Encontro de Mulheres do Cerrado. O encontro aconteceu de forma virtual nos dias 11 e 12 de novembro e contou com a participação de cerca de cem mulheres de todos os estados que compõem o Cerrado brasileiro.

Conseguimos reunir o rosto do Cerrado, que é sobretudo de mulheres negras e indígenas”, resumiu Valéria Santos, da Comissão Pastoral da Terra Regional Araguaia-Tocantins e que integra a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. A reunião teve a diversidade do Cerrado: quebradeiras de coco, mulheres sem-terra, atingidas por barragens, pescadoras, retireiras do Araguaia, indígenas de todos os estados do Cerrado, mulheres de comunidades de fundo e fecho de pasto, quilombolas, camponesas, acampadas, todas de diferentes gerações.

Foram sete meses de reuniões e planejamento para a realização do encontro. O tema escolhido foi “Mulheres do cerrado construindo resistências” e o objetivo principal era ser um espaço de escuta para as mulheres, segundo Valéria. “Fizemos um encontro fechado justamente para que as mulheres pudessem trazer seus relatos desse momento que estamos vivendo. Em um primeiro momento tínhamos receio de elas não interagirem muito porque para muitas delas essa foi a primeira vez em um espaço virtual, mas elas superaram a nossa expectativa”.

A demanda pela realização do encontro surgiu das mulheres em seus territórios. Os relatos ouvidos pelas diferentes organizações davam conta que as situações de violências aumentaram, que o empobrecimento piorou devido a perda de espaços para comercialização da produção das famílias. Sem contar que as políticas públicas não atendem essas mulheres.

O encontro se dividiu em dois momentos. O primeiro com o tema “Capitalismo, patriarcado e machismo, racismo e etnocentrismo como estruturante da realidade social”, facilitado por Carmen Silva (SOS Corpo) e o segundo com o tema “Sistema Capitalista e Pandemias. O impacto na vida das mulheres e resistências”, que contou com a facilitação das companheiras Maria Kazé (MPA-PI), Fátima Barros (Quilombo São Vicente-TO) e Meire Diniz (CIMI-MA e Teia dos Povos-MA).

A quilombola Fátima Barros, da Ilha de São Vicente, no extremo Norte do Tocantins, falou sobre as dificuldades que a pandemia impôs na vida dos quilombolas que vivem na ilha. “ O quadro se agravou na pandemia, que jogou luz sobre as mazelas que já enfrentamos”. Uma forma de fazer frente ao problema encontrado pela comunidade foi mapear as famílias que tiveram pessoas com Covid-19 na ilha. Além disso, a comunidade decidiu fechar o acesso para pessoas de fora.

Se soma à esse cenário de precarização a sobrecarga de trabalho. Além de serem responsáveis pelos serviços domésticos, cuidado com os filhos, com a roça, elas tiveram que auxiliar os filhos nas aulas online, isso nos casos das que conseguem ter acesso à internet. “Para nós é muito difícil se manter na luta, não temos apoio para o cuidado com nossos filhos. Se eu tenho uma reunião virtual ninguém quer cuidar das crianças, mas na hora do meu marido ninguém pode dar nenhum pio”, relatou uma participante do encontro.

O problema foi relatado por outras mulheres no encontro. “Mulher não tem vez para gente pegar o microfone para falar da nossa situação. Nós não temos espaço para falar na frente e nós abrimos nossa assembleia das mulheres para poder nós ir na frente e falar. Os Guarani Kaiowá sofrem muito, recebemos ameaças dos fazendeiros, as mulheres estão lutando sempre. A gente quando ia falar na frente, já falam que a gente não entende direito e tem que ficar em casa pra fazer almoço, janta e café. Passamos por preconceito e ameaças”, contou Lidia Faria de Oliveira – liderança Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

Sandra Regina, de Correntina, região oeste da Bahia, lembrou que o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)[1] surgiu justamente porque as quebradeiras estavam cansadas de ter suas pautas ignoradas pelos homens nos sindicatos. “Os nossos assuntos eram sempre os últimos a ser discutidos, a gente não tinha vez ou voz”, disse. Sandra finalizou sua fala com “temos que identificar o que nos oprime”.

Rasgar o contrato social

E foi justamente na busca de identificar e nomear o que oprime os corpos e os territórios das mulheres do Cerrado que ao longo dos dois dias de encontro as mulheres puderam debater os impactos do capitalismo, do patriarcado, do racismo e do etnocentrismo em suas vidas.

Carmen Silva, da ong SOS Corpo, trouxe essa reflexão “Estamos dentro desse sistema. Ele existe, a gente não vê, mas sente a dominação que se baseia na exploração e divisão sexual nosso trabalho, no controle sobre o nosso corpo, no poder maior para os homens e na violência como uma forma de mante a mulher num lugar subordinado”. Carmen facilitou o primeiro momento do encontro, que trouxe depoimentos as diversas violências de gênero produzidas pelo sistema de dominação patriarcal e capitalista nas mulheres que estão nos territórios.

O capitalismo não é uma figura abstrata, as mulheres do Cerrado conhecem seus nomes, suas botas e suas caras, são as empresas que estão instaladas no Cerrado, explica Maria Kazé, do Movimento Pequenos Agricultores (MPA) no Piauí. “Não podemos falar de um capitalismo distante, que paira no ar, mas sim do capitalismo que está com os pés no nosso Cerrado. Estamos falando de empresas como a Radar, por exemplo, ela é uma representação do capitalismo, assim como alguns políticos e empresários que representam o capitalismo”, disse Maria. Ela lembrou que, apesar de eles terem um domínio hegemônico, eles são minoria.

“A Suzano Papel e Celulose é o rosto do capitalismo pra gente, somos nós que sentimos os impactos que uma multinacional dessa causa, seja ambientalmente, politicamente, em todos os sentidos”, relatou uma das participantes, que integra o MIQCB do Maranhão. A forma que as comunidades no município de Imperatriz encontraram de fazer resistência foi criar uma rede com organizações nacionais e internacional para denunciar que a empresa tem arrendado terras, já que não pode mais comprar, para continuar a expansão de sua monocultura de eucalipto.

E são as mulheres que fizeram o enfrentamento dessas opressões ao longo da história. “Nós aprendemos, via contrato social, quais deveriam ser as estruturas da sociedade, qual o papel da mulher e a televisão, a igreja, etc sempre nos dizem para viver de acordo com esse contrato social, que nada mais é do que a estrutura para manter o capitalismo, manter as coisas como estão. Mas precisamos rasgar esse contrato social e não agir da forma como a sociedade quer que a gente faça.”

A fome voltou a crescer no Brasil e os dados mostram que a fome tem cor, tem região e é mais severa no meio rural. De acordo com o IBGE, 57% da população do Norte e 50% do Nordeste sofre com a insegurança alimentar. E 74% das casas em situação de fome são chefiadas por pessoas negras.

Resistências e esperanças

As mulheres que participaram do encontro são de diversas comunidades e territórios, mas têm em comum – além de viverem e serem parte do bioma Cerrado – a luta para se manter em suas terras, em seus rios e a esperança.

“Resistir tem sido a tônica desde que os invasores chegaram ao território que hoje é o Brasil e colocaram as cercas do latifúndio que tiraram até o cemitério das comunidades. As comunidades seguem sabendo que não existe babaçu livre em uma terra presa”, disse Meire Diniz, da Teia dos Povos e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) do Maranhão.

É preciso desconstruir, descolonizar toda a marca e a violência imposta pela colonização, pela naturalização do preconceito. “Isso não é nosso, não nos pertence e para nos livrar é preciso desconstruir, olhar para si e ver onde estou sendo preconceituosa, para assim irmos tecendo o bem viver”, refletiu Meire.

A quilombola Fátima Barros lembrou da ancestralidade como um guia para a luta. “Nós mulheres vanguarda desses processos de resistências. O que ocorre no meu território ocorre no Pará, na Bahia em outros estados, precisamos de resistência unificada, descolonizar as nossas práticas de luta também. Nós resistimos tocando a canoa, na quebra do coco, cuidando do cacau, pescando, nas roças, o nosso caminho é sempre da nossa ancestralidade”, finalizou Fátima.

A realização do Encontro de Mulheres do Cerrado, mesmo que por meio virtual, foi uma fonte poderosa de energia para as mulheres que articulam suas forças a partir dos afetos e das resistências compartilhadas. Como reforçou Maria Kazé, “Temos que seguir como sementeira e seguir multiplicando, ajudando e nascendo com outras mulheres na luta. Mão e abraços abertos sempre, para as companheiras que sofrem as opressões.”

[1] O MIQCB atua desde 1991 para a melhoria das condições de trabalho e valorização das mais de 400 mil quebradeiras de coco dos estados do Pará, Maranhão, Tocantins e Piauí.