Abong Convida: o aumento do uso da Lei de Segurança Nacional nos últimos anos representa uma ameaça para movimentos sociais

Entre os anos 2000 e 2020, a polícia federal abriu 191 inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional. Metade destes processos aconteceu nos últimos três anos dos analisados em levantamento feito pelo jornal Estado de S. Paulo: foram 96 casos após 2018, 77 deles apenas nos últimos dois anos. É o retrato claro do início de um momento de inclinação autoritária que ganha força nas últimas eleições presidenciais.

Estas informações foram recuperadas durante a Abong Convida, roda de diálogo promovida pela Abong BA/SE, nesta quinta-feira (19), com participação de organizações associadas da Associação Brasileira de ONGs. O encontro teve por objetivo debater a Lei de Segurança Nacional e seus impactos na liberdade e na atuação das organizações da sociedade civil e movimentos sociais.

Raísa Ortiz Cetra, Coordenadora do programa Espaço Cívico da Artigo 19, e Alex Pegna Hercog, comunicador social membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social palestraram durante a Roda. Raísa foi quem trouxe estes números, dando destaque para casos que ganharam repercussão recentemente, como os dos jornalistas Ricardo Noblat e Ruy Costa, do influenciador digital Felipe Neto e do ativista Rodrigo Pilha.

Ela aponta que pelo menos 10 casos de uso da LSN contra comunicadores foram mapeados no primeiro semestre de 2021. “Não estamos falando de grupos que lutam por expansão de direitos, mas sim de jornalistas”, expõe a ativista demonstrando a expansão da perspectiva de inimigos do estado, apontando também outro aspecto da lei: ela é feita para inimigos internos; para proteger o estado de sua população e não o contrário.

“Não se justifica ter uma lei dessa no Brasil por que não há ameaça concreta de terrorismo aqui. Esta, na verdade, é uma boa ‘fórmula’ para percebermos quando está se discutindo a implementação de uma lei que ameaça movimentos sociais. A proteção do estado nunca é um fim em si mesmo para cercear direitos”, afirma. A antiga LSN, escrita no período da ditadura, em 1983, foi revogada pelo Congresso Nacional. O PL que propõe o seu fim traz novos textos e depende de sanção presidencial, mas ainda preocupa.

“Alguns artigos da LSN continuam no novo projeto e suas definições permanecem extremamente semelhantes às do texto antigo, como ‘sabotagem’, ‘espionagem’, ‘crimes contra a honra’ e ‘animosidade entre as Forças Armadas’. O projeto foi aprovado em pouco tempo e sem consulta popular. É a chance de termos aprovado na democracia um texto ditatorial.”, explica Raísa.

A LSN não está sozinha no rol legislativo que trata de assuntos deste tipo. Há também a Lei Antiterrorismo e a Lei de Organização Criminosa. Alex destaca que todas estas leis parecem uma resposta justamente à atuação dos movimentos sociais. “As estratégias de manifestação e protesto dos movimentos todas são enquadradas nestas leis, desde queimar pneu na beira da estrada à ocupação de um espaço público. São textos que têm o claro objetivo de perseguir adversários políticos.”, pontua.

Ele afirma que estamos diante de várias ofensivas contra os movimentos sociais e elas não são fatos isolados. “O governo federal tem atuado em várias frentes para criar uma cortina de fumaça que justifique seu avanço no autoritarismo. A não aceitação do processo eleitoral em caso de derrota é um exemplo. A discussão sobre voto impresso é uma ferramenta para ampliar a narrativa de deslegitimação do processo eleitoral”.

Além das outras leis já citadas, o Projeto de Lei 1595, que discorre sobre “ações contraterroristas” e estava parado desde 2019, voltou a tramitar na Câmara em março deste ano. “Ou seja, o PL voltou a ser debatido no Congresso no momento em que se buscou revogar a LSN. Coincidência?”, provoca o comunicador. Dentre outros pontos, o PL estabelece um sistema de vigilância paralelo centralizado no Presidente da República.

“Ele amplia o alcance de técnicas antiterroristas. Permite o acesso a dados cadastrais de algumas pessoas sem necessidade de autorização judicial. Quer permitir que órgãos de inteligência possam tanto se infiltrar quanto acessar dados dos movimentos sem entraves. Cria um rearranjo institucional, alterando competências de algumas instituições para centralizar tudo em uma autoridade federal”, aponta o membro do Intervozes.

Durante o encontro, se falou sobre como essas ofensivas podem gerar um tipo de autocensura e também acerca do impacto da criminalização de movimentos sociais nas demarcações de terra, por exemplo, a partir do momento que a ocupação de um espaço pública como o Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ou a Funai – Fundação Nacional do Índio pode ser considerado ato criminoso.

Neste sentido, Raísa lembrou a constante criação de lógicas de medo para justificar leis de cerceamento de direitos. “Como os incêndios em Alter do Chão. Ali foi utilizado um discurso recorrente de ação estrangeira.”. Alex aponta que essas legislações são o braço jurídico das ofensivas autoritárias, trazendo como exemplo a situação dos conflitos dos povos indígenas. “Se essas propostas passarem, tudo vai se acentuar cada vez mais.”.

Raísa também aponta a censura contra artistas como algo crescente e apresenta o Mobile – Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística, uma rede de entidades e coletivos que atuam na defesa e promoção da liberdade de expressão artística e cultural no Brasil. Dentre outras coisas, o movimento monitora o número de casos de censura a artistas em anos recentes e já contabiliza 130 casos desde 2019.

A Roda

A Roda de Conversa promovida pela Abong BA/SE contou com a participação de membros de organizações associadas à Associação Brasileira de ONGs. O encontro também foi marcado por dois momentos poéticos. Um deles protagonizado por Ametista Nunes, que recitou dois poemas. Um deles de Garcia Lorca, poeta morto na guerra civil espanhola.

Ametista enxerga na morte do poeta e no momento vivido à época semelhanças com o que vivemos hoje. Sua biografia aponta indícios de que sua orientação sexual pode ter sido um dos motivos de seu assassinato – ele era homossexual. Lorca também integrava movimentos populares.

Daniela Bento ficou responsável por fazer o encerramento do encontro. Ela recitou uma poesia de sua autoria, feita em homenagem a Rafael Braga, jovem negro, pobre, catador de latinhas e único condenado diante no contexto das manifestações de 2013, mesmo sem ter participado delas. Rafael portava apenas pinho sol e água sanitária. Abaixo, a íntegra de sua poesia, que dialoga com a música “O Mundo é um Moinho”, de Cartola.

POR NÓS DA FAVELA

“Ainda é cedo amor!”

Mas já sentiste o peso dessa vida

Dos desmandos que rola lá em cima

No engano que acelera a  partida

fazendo o teu sonho virar pó.

Não sei bem ‘se o mundo é um moinho’

Mas se for não tritura só mesquinhos

Tem honesto pagando o desalinho

Da justiça e seu olho que só vê

O que rouba um prato de comer

Ou quem compra 100g no fiado.

Que só prende o menino da esquina.

Mas não vê o mandate da chacina

Ou o pó quando vem de helicóptero

envolvendo senado ou deputado

Manda logo mudar o delegado

E sem ética isso tudo é arquivado.

Ouça-me bem amor!

O seu sonho nunca foi mesquinho

Mas o mundo dos covardes é um moinho

Troca sempre tua vida pelo pó.

Daniela Bento (@daniela.poeta)