O DIA MUNDIAL DA ÁGUA, O IMPASSE DO PRODUTIVISMO E A CRISE POLÍTICA

Em meio à grave turbulência política e à crise econômica, nos apegamos ao Dia Mundial da Água para, quem sabe, tirar alguns ensinamentos sobre esses tempos cujas contradições se exacerbam, a partir das quais reafirmamos nosso compromisso por mais justiça com democracia e a garantia de direitos básicos à população.

O que está em jogo é, de um lado, a constatação do fim de um ciclo restrito à inclusão pelo consumo, da política de alianças assentada no ‘ganha-ganha’ como síntese de que ricos e pobres são beneficiários de determinadas políticas governamentais, mesmo sem enfrentar questões estruturantes deste modelo de desenvolvimento marcado por confluências perversas, a exemplo do equilíbrio das contas nacionais pelas commodities agrícolas e minerais e seus pesados impactos socioambientais. Ou da prioridade dada à produção de automóveis exacerbando o caos e a imobilidade urbana, contudo como grande matriz industrial e de serviços geradora de empregos. A crise mundial retardada de 2008 rebateu pesado no Brasil com a desaceleração das economias, em especial da China, hoje nossa principal parceira comercial.

De outro lado, a operação Lava Jato, que entrou para desbancar um esquema de corrupção urdido desde governos anteriores, remontando ao período ditatorial, provocando um desmonte na maior empresa do país – a Petrobras – e as implicações em cadeia, rebatendo em poderosos fornecedores, agravando a crise econômica e política com desfecho imprevisível. Para completar o quadro, não se pode desconsiderar o compasso de espera das grandes obras de infraestrutura e seu potencial gerador de empregos. A luta política pelo poder e desestabilização do projeto desenvolvimentista liderado por Lula e Dilma evidencia que em tempos de crise econômica, rapidamente se desfaz um ciclo aparentemente virtuoso em que todos saem ganhando. Nestes ciclos, o capital se mexe e lembra: “meu pirão primeiro”. Este governo já não lhes interessa.

E o que esta breve retrospectiva tem a ver com o Dia Mundial da Água? Tem a ver porque permite enunciar, para além dos limites de sua viabilidade econômica, sérios equívocos socioambientais deste modelo produtivista dominante. Nada mais ilustrativo que o incomparável crime ambiental e social ocorrido em Mariana, pela Samarco/Vale, alcançando a bacia do Rio Doce e grandes extensões de mar na costa do Espírito Santo, atingindo dezenas de comunidades tradicionais e usuários de água em grandes cidades.

Longe de ser um acidente isolado de grandes proporções, nem de todo dimensionado, o episódio revelou que há outras barragens ameaçadas. Mas a atividade mineraria tem outros impactos em relação á água, a exemplo dos minerodutos que implicam no uso abundante de água como transporte e em muitos casos, condição para sua viabilidade econômica. Comunidades quilombolas no Norte de Minas denunciaram em 2014 a presença de empresas prospectando mananciais de água para seus empreendimentos, ameaçando o modo de vida dessas populações.

É também conhecida a grita das comunidades no entorno dos extensos monocultivos de eucalipto tanto pela perda evidente de biodiversidade, como pelo rebaixamento do lençol freático.

E a pecuária, quantos litros de água são necessários para produzir um quilo de carne? Ao menos no caso da pecuária bovina, em torno de 17.000 litros!
E para onde percolam os imensos depósitos de agroquímicos jogados nas grandes plantações do agronegócio? Nos rios.

E a crise hídrica que tivemos no ano passado, se deve a quê? Sabidamente a fatores sazonais agravados pelo El Niño, mas com certeza aos desmatamentos realizados pelo agronegócio, particularmente nas fronteiras agrícolas da Amazônia e Pantanal.

E a irrigação? Comprovadamente a atividade agrícola consome 70% da água doce disponível e utilizada. Se as chuvas não se formam suficientes na Amazônia, os “rios voadores” serão menos densos e se precipitarão em menor volume em S. Paulo… a tal crise hídrica.

E nas cidades, o que acontece com os rios tamponados e grandes áreas impermeabilizadas sem ter por onde escoar as águas pluviais? Enchentes.

Que parte da população é sobremaneira atingida por estes fenômenos cada vez mais extremos? Aquelas mais empobrecidas que moram nas partes mais baixas e insalubres.

Não é demais lembrar que a água é o recurso mais abundante no planeta Terra, porém, apenas 0,007% estão disponíveis para o consumo humano e que embora o Brasil detenha 14% da água disponível, ela está mal distribuída em relação aos grandes centros. Roberto Malvezi, o Gogó, da CPT, nos lembra que ”70% da água doce do Brasil estão concentradas na região Norte, a menos populosa, enquanto que as regiões Nordeste e Sudeste, com alta população, dispõem de pouca água. O risco de desabastecimento em larga escala é uma ameaça não somente em áreas tradicionalmente áridas, mas também nas grandes cidades.”

Assim, não se pode desconectar o dilema de uso deste bem precioso como um direito humano essencial, do trato cuidadoso desta riqueza levando em conta sua universalidade e prioridades de uso. Estas questões vêm bem a propósito da Campanha da Fraternidade Ecumênica – “ Casa comum, nossa responsabilidade” este ano dedicado ao oportuno tema do Saneamento Básico, que compreende ao menos 4 elementos interligados: água potável de qualidade, o correto esgotamento sanitário, o tratamento adequado de escoamento das águas pluviais e um sistema de tratamento dos resíduos sólidos. O professor Luis Morais, da Universidade Federal da Bahia, um das maiores autoridades do país nesse campo, lembra ainda um quinto componente associado, que são os vetores ambientais, a exemplo de roedores e insetos voadores.

A partir do Observatório do Saneamento Básico na Bahia, ele alerta para duas questões centrais: que o enfrentamento da pandemia dos mosquitos em suas múltiplas espécies com graves danos à saúde pública, em particular a associação com centenas de casos de microcefalia predominantemente no Nordeste Brasileiro, a par das medidas emergenciais de mobilização comunitária, deve se concentrar na resolução das causas estruturantes de infraestrutura adequada de saneamento. A outra observação que considera crucial: a garantia do saneamento como bem público e não objeto de privatização do serviço. Lembra que a campanha é urgente e oportuna para discutir estratégias comuns pela defesa do saneamento público de qualidade e universal, sendo este o mesmo objetivo do Grito da Água, tradicionalmente realizado a cada ano pelos movimentos sociais, entidades de saúde e sindicatos. A esse respeito, alerta para “o avanço perigoso de projetos privatizantes e o desmonte e, que no caso da Bahia, as políticas públicas de saneamento apontam para a necessidade de reunir vários atores para conter essas investidas”. A água é um bem natural, ambiente onde surgiram as primeiras formas de vida e seria um equívoco reduzi-la a um “recurso hídrico” que é a conotação de uso econômico que se faz dela. Se cada ser só existe porque antes tem a água, então é um conceito muito mais amplo e imprescindível e se inclui entre aqueles bens e direitos comuns a que se refere o dístico da ABONG.

Inspirada pelo lema “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (Amós 5.24), a CESE tem se dedicado com prioridade à campanha, divulgando e proporcionando seminários e rodas de diálogo com igrejas, grupos ecumênicos, lideranças comunitárias e junto ao seu próprio corpo funcional. Lembra ainda de outras passagens bíblicas emuladoras que ressaltam a importância do cuidado humano pela integridade da criação. A água limpa e potável, também aparece como símbolo da vida quando Moisés fez brotar o líquido da vida no deserto (Êxodo 17,6). É também a água como fonte de vida que Jesus anuncia à samaritana (João 4,14).

Por fim vale lembrar que os Objetivos do Desenvolvimento Sustentado – ODS, lançado recentemente, também conhecido como Agenda 2030, traz a questão da água como bem comum e essencial para a consecução direta de 4 dos 17 objetivos, um deles específico – o ODS 6: garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos. Os demais têm a ver com a segurança alimentar, a agricultura sustentável, a recuperação dos ecossistemas, o combate à desertificação, degradação do solo e a perda da biodiversidade.

Vale ainda uma menção à COP 21 – o Acordo de Paris que tratou das Mudanças Climáticas em meados do ano passado e suas recomendações, entre as quais revisões sistemáticas dos compromissos de cada signatário, em que constata o aumento dos conflitos pela água e de outros recursos naturais essenciais.

Que o Dia Mundial da Água nos dê energia e alimente nossas esperanças em defesa do Estado de Direito e de um modelo sustentável rumo ao Bem Viver.

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