Agricultoras, artesãs e outras mulheres cerradeiras partilham experiências e sabedorias em seminário promovido pela CESE

Em 2020, o Brasil inteiro viu o Pantanal ser atingido por queimadas que dizimaram boa parte da fauna e flora do bioma. Segundo relatório técnico elaborado pelos setores de geoprocessamento do Ministério Público do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, 4,5 milhões de hectares foram atingidos entre 1º de janeiro e 30 de novembro do ano passado. Mas de acordo com Cláudia Sala de Pinho, o fogo não destruiu apenas o meio ambiente.

“Os nossos antepassados estão nas árvores, águas, nos animais. O que foi destruído, destrói também um pouco da gente, por dentro. Da nossa história, de todo Pantanal. De toda essa conexão de vidas que há nesse ambiente. Perdemos árvores com dezenas de anos, que eram referência. ‘Perto daquela árvore tinha tal planta medicinal’. A gente se perde um pouco, perdendo essas referências”, desabafa.

Este relato foi um dos narrados durante o “Seminário Gênero e Raça no Cerrado. E nós nisso?”, realizado pela CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço em parceria com a HEKS-EPER, nos últimos dias 9 e 10. Bióloga mestra em Ciências Ambientais e Coordenadora Regional da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, Cláudia foi uma das mulheres que partilharam experiências e saberes nos encontros.

Apesar do cenário de destruição, ela relata que a Rede hoje coordena uma ação de restauração do Pantanal no Mato Grosso. “Em Cáceres, temos um grupo de pescadoras atuando. Elas coletam frutos em áreas onde sobrou vegetação das sementes, levam para as casas, distribuem entre elas e outras/os pescadoras/es e plantam essas mudas, que foram organizadas por elas”, conta a bióloga, sobre ação que se desdobra em muitas outras.

Tudo tem por objetivo a restauração do Pantanal, suas cores e vidas, e de laços afetivos que foram afetados pelo fogo. “É um processo de reconstrução da gente também. De fechar as feridas que ficaram pela destruição do fogo. Restaurar o ambiente perpassa uma questão muito maior: de se reconectar com o território numa dimensão espiritual, cosmológica; e são as mulheres que estão à frente disso”, afirma Cláudia.

A ação do agronegócio no Pantanal nesse período é um grande reflexo do seu impacto em todos os biomas brasileiros. Acima de tudo, o “Seminário Gênero e Raça no Cerrado. E nós nisso?” é um espaço para denunciar os crimes cometidos pelos grandes empresários e latifundiários que se unem ao estado para atacar os povos e comunidades tradicionais. Mais ainda: é um espaço para munir de esperança a luta desses povos.

O Seminário Gênero e Raça no Cerrado. E nós nisso?

O Seminário tem por objetivo promover um espaço de reflexão política sobre as expressões do racismo e do machismo nos territórios do Cerrado e do seu agravamento com a pandemia de Covid-19; sobre as lutas por direitos das mulheres e dos povos tradicionais nos e por seus territórios; além de favorecer o intercâmbio de vivências e saberes dos povos do Cerrado, buscando evidenciar suas realidades e fortalecer suas lutas.

Além de Cláudia, outras quatro mulheres foram convidadas a partilharem experiências diretamente, em diferentes momentos dos enontros. Fran Paula, do GT Ancestralidade da Associação Brasileira de Agroecologia e o GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia; Francisca Sena, Educadora Popular, Assistente Social mestra em Políticas Públicas e Sociedade, integrante do INEGRA – Instituto Negra do Ceará e da Rede de Mulheres Negras do Ceará; Marli Borges, integrante do grupo Guerreiras da Resistência do MOQUIBOM – Movimento Quilombola do Maranhão; e Raimunda Nonata da Silva Nepomuceno, do grupo Guerreiras da Resistência do Quilombo Cocalinho.

Peça da facilitação gráfica do encontro feita pela jornalista Mônica Santana

Raimunda Nonata traz como estratégia de enfrentamento ao agronegócio a manutenção de suas tradições. As ervas medicinais são parte inseparável da cultura do seu povo – o boldo, o mastruz, o óleo do buriti. A união das mulheres também é destaque em seu relato. “A gente enfrenta muita coisa junta. Por isso, nos identificamos como Guerreiras da Resistência. Por fazermos esse enfrentamento ao agronegócio no território”.

Em sua fala, Fran Paula relembra uma ação que participou, em que foram feitos testes de transgenia nas sementes crioulas de uma determinada comunidade, e diz que a tristeza de uma senhora é imediatamente perceptível ao ver que os testes apontaram a presença de substâncias químicas em suas sementes, já contaminadas por agrotóxicos utilizados nas grandes monoculturas que vem cercando cada vez mais os povos tradicionais.

Ela pontua que todo esse sistema agrícola tradicional sofre uma dupla violência. “Existe uma narrativa de que é um sistema atrasado, não tem serventia. O fato de ser considerado atrasado, não tecnológico, também é uma forma de racismo contra essas práticas e comunidades. O que o agronegócio considera atrasado é tudo aquilo que ele não consegue se apropriar”, afirma

Francisca Sena, que também foi moderadora destes encontros, complementa essa fala pontuando que o racismo não está apenas nas relações interpessoais. “É estruturante. Está na legislação brasileira, em sua composição e na atuação dos governantes”. Ela faz questão de ressaltar que não se refere apenas a uma esfera governamental, mas a todas. “Estão todos articulados para que se abram as porteiras para o agronegócio”, denuncia.

Para ela, dois fatores da atualidade tendem a fortalecer as desigualdades resultantes do racismo: a atuação articulada e racista de agentes do Estado e a pandemia de Covid-19. “Houve queda da renda das famílias. Nem todos/as puderam se isolar, mas com suspensão das aulas e perdas de postos, tem mais gente dentro de casa, e isso tem representado aumento de violência contra as mulheres em casa. No Cerrado não é diferente”, diz Sena.

Além dos fatores já citados, como envenenamento das terras e a pandemia, Marli Borges aponta outro elemento como agravante da situação dos povos tradicionais no período recente: a seca. Ela conta que não existe sistema de irrigação em sua comunidade. Todos esses fatores somados à pouca chuva vêm afetando a produção local. Por isso, pontua, as mulheres estão buscando outras fontes de renda durante a pandemia.

Como uma das estratégias de resistência do seu povo, Marli fala sobre a criação de um Centro Cultural em que pretendem dar aulas para resgate e manutenção de suas tradições, realizar oficinas, como as de artesanato, por exemplo. “A gente precisa se fortalecer. Como não tá tendo feira durante a pandemia, nosso empenho agora é esse centro. É um fio de esperança que a gente tá se apegando pra melhorar”.

A riqueza dos relatos e das lutas

Quando todas as participantes foram separadas em grupos para conversar sobre questões que permeiam o debate sobre gênero e raça no Cerrado, surgiram histórias diversas. Como a de uma liderança indígena, mulher, cacica de sua aldeia, no oeste baiano, que assumiu a liderança de seu povo há dois anos, enfrentando e vencendo o machismo de membros de sua própria e de outras aldeias.

Ela também enfrentou a homofobia após assumir o relacionamento com sua atual companheira, de quem tem apoio na comunidade atualmente. Hoje elas têm o respeito de todos/as, inclusive de seus dois filhos, que são as opiniões que mais importam para Rosivania. Nos grupos, surgiram histórias de resistência até mesmo de uma pequena bebê indígena, no Piauí.

Em uma cidade localizada no Cerrado piauiense, uma jovem indígena do povo Akroá Gamela se deparou com uma das faces do racismo ao tentar registrar sua filha em cartório: a princípio, ela foi impedida de incluir o nome de seu povo no da criança. Além de questionar a origem indígena da jovem, o órgão ainda solicitou ao seu parceiro que apresentasse um requerimento autorizando a inclusão do sobrenome indígena na menina.

Durante o processo, a família foi orientada a usar apenas o nome do pai no registro e somente depois iniciar um processo para incluir o nome do povo Akroá Gamela na criança. Sua família comprou a briga, venceu e hoje clama ter entre si a primeira indígena registrada em cartório no sul do Piauí. A menina ainda não compreende a dimensão do seu feito, mas ela já é símbolo de resistência e muito orgulho para o seu povo.

Assim foi o Seminário. Dos debates, percebeu-se a necessidade de se aprofundar a discussão sobre os movimentos LGBTQIA+ dentro das organizações, de se conversar sobre a importância de aproximar a Juventude das lutas, de se falar sobre a saúde da mulher, entre outros temas. E esses são temas que sempre terão espaço para amplo debate, nos encontros promovidos pela CESE.

Peça da facilitação gráfica do encontro feita pela jornalista Mônica Santana

Olga Matos, Assessora de Projetos e Formação da CESE, pontua que este Seminário é feito a muitas mãos e corações. “Por isso que sai essa coisa bonita que a gente vivenciou nesses dois dias”. E complementa. “A gente sabe que nessa seara de relações sociais e de gênero, as mulheres precisam estar fortalecidas para poderem encarar os conflitos e desafios e construir algo no caminho da equidade”.

Rosana Fernandes, Assessora de Projetos e Formação da CESE, destaca que quando falamos de gênero, estamos falando de relação, e existe espaço para que todos e todas se organizem. “Mas nos importa muito, nesse momento, a situação de opressão na onde as mulheres estão subordinadas. E de um lugar onde a maioria das que estão aqui já conhecem muito bem: o lugar da mulher negra. Esta questão sustenta tudo que falamos sobre opressão – de raça, cultural, entre outras”.

Sônia Mota, Diretora Executiva da CESE, ressalta que a realização de cada um desses seminários é de extrema importância, pois discute temas importantes – como o combate ao patriarcado, ao machismo, ao racismo, às desigualdades -, mas tudo conduzido a partir de diversos olhares, do chão das mulheres indígenas, quilombolas, dos povos tradicionais, e entendendo que cada um desses grupos é afetado de formas específicas.

Dentro do mesmo projeto, ainda serão realizadas uma oficina específica para grupos que pertencem aos estados que integram a região do MATOPIBA e outra para os de outras regiões. Estes primeiros encontros contaram com participação majoritária de mulheres de diversos estados brasileiros – Bahia, Piauí, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, entre outros.