Carta do I Encontro Nacional das Mulheres Cerrado

Carta do I Encontro Nacional das Mulheres Cerrado

Nós somos as guardiãs do Cerrado e dos saberes populares que herdamos de nossos e nossas ancestrais. Por
toda nossa história, lutamos para que nossa cultura e modos de vida resistissem. Unidas na nossa
diversidade, afirmamos aqui que o Cerrado brasileiro tem cara de mulher! Essa mulher é resistente,
resiliente, negra, indígena, quilombola, feminista, camponesa, assentadas e acampadas, sem-terra, atingida
por mineração e barragens, quebradeira de coco babaçu, sertaneja, pescadora, vazanteira, LBT+, assalariada
rural, fundo e fecho de pasto, raizeira, benzedeira, agricultora familiar, geraizeira, ribeirinha. O Cerrado é um
mosaico de vidas e biodiversidades. É berço das águas do país e seus campos e florestas são os lugares que
nos alimentam. Por isso, participamos a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado por compreender a
profunda relação desse bioma com nossos modos de vida.

“Ninguém vai morrer de sede nas margens dos nossos rios!”

A água é fundamental para nossas vidas. Nós, mulheres, que sempre garantimos o bem viver de nossas
famílias, sentimos as consequências da restrição de água de forma mais profunda. A crescente expansão do
agronegócio e de grandes projetos de infraestrutura em nossos territórios tem trazidos grandes
consequências como destruição da natureza e expulsão de povos e comunidades tradicionais inteiras dos
locais onde sempre viveram. Nossos aquíferos estão sendo ameaçados. É nesse contexto que, nós, as
mulheres cerradeiras, nos posicionamos contra qualquer processo de destruição das fontes, contaminação
e privatização das águas. Somos guardiãs desse bem, sempre zelando por ele e através das nossas práticas
ancestrais desenvolvemos métodos de conservação das fontes, recuperamos nascentes, e armazenamos
esse bem comum.

“Território livre pra viver!”

Nós, mulheres do Cerrado, denunciamos a grilagem, pistolagem, a especulação, envenenamento,
desmatamento, o extermínio da fauna e da flora nos nossos territórios. A ausência de regularização fundiária,
o arrendamento das terras e a expansão do latifúndio, tem vindo associadas ao aumento da violência no
cerrado. Todos esses processos têm avançado com a conivência e, muitas vezes, contribuição do Estado
Brasileiro. Nossas lideranças têm sido perseguidas, assassinadas, e nossas comunidades tem sofrido
constantes ameaças de expulsão dos territórios. Além disso, denunciamos o MATOPIBA como um projeto de
morte para o Cerrado brasileiro, nossas águas, nossos territórios, nossos rios, nossas florestas, nossos solos
e nossa gente. Somos contra a estrangeirização das nossas terras. O avanço da mineração destrói a soberania
dos nossos territórios e tem representado ameaças a todas as formas de vida nas nossas comunidades.
Defendemos a demarcação das terras dos povos indígenas, a titulação das comunidades quilombolas e
regularização as áreas de comunidades, repudiando a titulação individual pois nossas terras têm caráter
coletivo. Exigimos também o fim de todas as ameaças às nossas lideranças e a garantia do fortalecimento
do sistema de proteção as defensoras de direitos humanos.

“Eu creio na semente,
herança de nossos antepassados e
sinal de reprodução da vida”

O agronegócio e sua lógica de produção baseada no uso de sementes transgênicas, agrotóxicos, latifúndio e
monocultura é um inimigo das mulheres do cerrado. Os agrotóxicos contaminam nossos mananciais, nossos
solos, e envenenam nossos corpos, até mesmo nosso leite materno. A pulverização aérea é um atentado às
nossas vidas. Esse modelo de produção fere a forma que acreditamos de construir nossa autonomia
econômica. Não vemos a natureza como meros recursos. A priorização da lógica empresarial do agronegócio,
o machismo e o racismo se refletem também na desvalorização dos nossos produtos, da nossa força de
trabalho e das nossas práticas medicinais ancestrais como as farmácias vivas. Esse fenômeno também está
conectado com o descaso do governo refletido no desmonte das políticas públicas de incentivo a agricultura
familiar, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e da Política de Garantia de Preços
Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio). As mulheres consideram importante o
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), entretanto, se contrapõem a todas as barreiras
institucionais que dificultam o acesso ao programa.

A manutenção dos nossos modos de vida nos nossos territórios está conectada com nossa capacidade de
convivência e manejo das áreas do Cerrado. A sociobiodiversidade cerradeira é base da garantia da soberania
e segurança alimentar e nutricional das nossas comunidade e sociedade. Nossas práticas ancestrais de
armazenamento, troca e cultivo de sementes conservam a biodiversidade. Acreditamos na agroecologia
como prática de convivência com o campo e de produção de alimentos que se contrapõe ao agronegócio.
Nossas iniciativas de geração de renda estão conectadas com a permanência no território e a conservação
do Cerrado beneficiando nossas comunidades, toda sociedade, além de garantirem nossa autonomia
econômica. Exigimos a valorização e a visibilidade da nossa produção com o estímulo a circuitos curtos, como
as trocas nas comunidades, os bancos de sementes e as feiras agroecológicas. Cobramos também o incentivo
aos mercados institucionais e políticas públicas de microcréditos e fundos rotativos.

“Toda uma vida de luta e
nenhum direito a menos”

Nós mulheres do Cerrado entendemos as propostas de reforma da previdência como o fim da previdência
pública. O ataque a previdência social e ao princípio da solidariedade contributiva depõem contra toda a
nossa história de conquistas da Constituição de 1988. Somos contra qualquer retrocesso na previdência
social.

A intensão dos ataques a previdência social e o seu reflexo negativo na vida das mulheres também estão
conectados com a desvalorização e um aumento da exploração do seu trabalho. A sobrecarga do trabalho
doméstico das mulheres já é uma dura realidade na nossa vida e é frequentemente invisibilizada se
agravando na medida que os serviços públicos são desmontados, em especial diante da Emenda
Constitucional 95 que congela os investimentos em saúde e educação.

Associado tudo isso, denunciamos um processo de deslegitimação dos nossos sindicatos com legislações que
destituem o seu poder de representação das trabalhadoras/es do campo. Negar os sindicatos é também
negar nossos legítimos espaços de organização política das trabalhadoras do campo.
“Não existes territórios livres com corpos presos!”

Nós mulheres do Cerrado denunciamos todas as formas de violência que sofremos em nossos territórios. O
ódio as mulheres perpetrado pelos atuais representantes das instituições brasileiras tem se refletido também
no aumento do feminicídio nas nossas comunidades. Entendemos a flexibilização da posse das armas como
uma ameaça direta as nossas vidas.

Denunciamos também, junto com a violência patriarcal, o racismo como um sistema que afeta nossas vidas
e nos violenta diariamente, seja desrespeitando nossos corpos, seja discriminando nossas práticas ou
desvalorizando nossas contribuições políticas e culturais. No mesmo sentido, o genocídio dos povos
indígenas tem sido um processo histórico de extermínio baseadas em discriminação étnica e interesses
econômicos.

Os grandes projetos do agronegócio, hidronegócio e mineração atingem os nossos territórios, mas tem
impactos diferenciados na vida das mulheres. Denunciamos o aumento do abuso e exploração sexual,
gravidez indesejada na adolescência, e aumento do uso de drogas e do alcoolismo nas nossas comunidades
como consequências diretas desse processo. Além disso, os grandes empreendimentos representam graves
riscos para as comunidades desde o elevado impacto ambiental, passando pela possibilidade de acidentes,
até a especulação sob os territórios, o que tem gerado diversos processos de adoecimento mental das nossas
mulheres.

“Elas estão chegando,
Pelas trilhas e estradas
Pelos rios e florestas,
Vieram do solo sagrado
São das águas do Cerrado”

Fortalecidas pelas nossas ancestrais e pelo encontro com nossas companheiras, entendemos que nossos
caminhos são como afluentes que desaguam: “mulheres são como águas, crescem quando se encontram”.
É tempo de fazer ecoar as nossas resistências, valorizar nossos saberes e práticas ampliando a visibilidade do
papel das mulheres enquanto guardiãs do Cerrado, dando luz também a contribuição das mulheres jovens
nessa trajetória. São os nossos modos de vida que mantém as florestas e os campos de pé. Por isso, nos
somamos a construção do Tribunal dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado para denunciar as
violências sofridas nesse bioma.

Estamos cientes da força que tem a mobilização e organização das mulheres. Compreendemos por isso a
Marcha das Margaridas como um momento estratégico de expressão das lutas das mulheres do campo, das
florestas, das águas e das cidades. Reafirmamos que também somos “Margaridas na luta por um Brasil com
soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violência”!
As mulheres do Cerrado estão em pé e em luta.

Luziânia, junho de 2019.

Carta de Luziania. 16.06.19 para download e impressão/distribuição