A destruição do Cerrado aumentou 146% em março deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado; enquanto nascentes e rios são devastados, mais de 35 milhões de pessoas não têm acesso à água potável no país.

Neste mês de junho, a CESE traz informações e relatos de como o aumento do desmatamento, desrespeito às leis e a falta de punição para infratores afetam o direito à terra, água e território. Neste terceiro e último texto, falamos sobre como a destruição do Cerrado, de seus mananciais e vegetação nativa afetam o meio ambiente e o modo de vida das populações que já enfrentam outras desigualdades nas grandes cidades.

O primeiro semestre de 2021 está prestes a se encerrar e o Brasil segue atingindo marcas negativas históricas relacionadas a questões socioambientais. Um estudo divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indica um aumento de 146% no desmatamento do Cerrado no mês de março, em comparação com o mesmo período do ano passado. Os dados do Inpe também alertam para uma alta de 12% na devastação da Amazônia Legal, em relação a março de 2020.

Ainda de acordo com o levantamento realizado pelo Inpe, a Bahia registrou a maior destruição de área de Cerrado, com 214,5km² desmatados. Tocantins, com 79,25km², e Minas Gerais, com 78,52km², completam a lista dos três estados brasileiros com maior desmatamento do bioma no mês de março. Além de florestas sendo derrubadas, a ação predatória ocasionada por latifundiários ligados ao agronegócio e empresas mineradoras destrói nascentes, rios e toda biodiversidade encontrada nesses biomas. A flexibilização da Lei Geral de Licenciamento Ambiental tende a tornar esse cenário ainda mais preocupante.

Trator de esteira é flagrado derrubando áreas de Cerrado, no Tocantins. Foto: Divulgação/Douglas Mansur

Além de vulnerabilizar a vida de povos e comunidades enraizadas nos biomas, esse desequilíbrio afeta, cada vez mais, a dinâmica dos grandes centros urbanos brasileiros. De acordo com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), o volume total de água armazenada nas represas que abastecem a região metropolitana de São Paulo é pior do que os níveis registrados em junho de 2013, quando o estado viveu sua pior crise hídrica.

Pesquisadores indicam relações diretas entre desmatamento e falta d’água, desmistificando o discurso de que a escassez de chuva por si só é a única causa dos problemas hídricos. Em entrevista à BBC, Yuri Salmona, doutorando em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (UnB), afirma que “resultados mostram que a substituição da vegetação nativa por lavouras têm impactado o fluxo dos rios da região”, se referindo a uma pesquisa realizada nas bacias hidrográficas do Cerrado.

Escassez de água e infraestrutura em saneamento

A falta de abastecimento de água é uma realidade antiga na região metropolitana do Recife (PE), como relata Rosimere Nery Peixoto, integrante da Coletiva de Justiça Socioambiental do Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE). “As periferias do Recife já vivem um racionamento de água há muito tempo. São cinco dias com água, dez dias sem. A água deveria ser um bem comum para todos, mas nós vemos que é um bem comum para quem tem dinheiro. E essa realidade se estende a outras regiões de agreste e no sertão”, pontua.

Rosimere, no encontro dos 30 anos do FMPE, em 2019. Divulgação/FMPE

Situação semelhante de desigualdade pode ser encontrada na periferia de Fortaleza (CE), mais especificamente na região da Grande Bom Jardim. É lá onde vive Rogério Costa, membro da Rede Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável da Região do Grande Bom Jardim (DLIS). “Aqui não há total cobertura de abastecimento de água e saneamento, sobretudo rede de esgoto. Por diversas oportunidades fizemos luta para defender a ampliação da rede de esgoto dessa região. A cidade de Fortaleza tem quase 60% de cobertura deste serviço, mas é de forma desigual. A nossa região só tem 30%”, explica o também militante do Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza e da Frente de Luta por Moradia Digna.

Rogério, de óculos e camisa branca, logo atrás do estandarte da Zeis Bom Jardim. Foto: Arquivo Pessoal/Rogério Costa ( captada antes do início da pandemia)

Rogério observa que, antes da devastação de boa parte da vegetação nativa de Fortaleza, os casos de doenças tropicais eram menos recorrentes. “Até a década de 80 tínhamos a vegetação nativa mais preservada de Cerrado, Caatinga e até Mata Atlântica. Hoje, somente no Território Indígena dos Tapebas, na região metropolitana, é possível encontrar os biomas preservados. Por aqui, geralmente quando caem as primeiras chuvas nesse período de inverno, é possível notar maior incidência de doenças transmitidas por mosquitos. E isso é agravado pela falta de mata nativa e ausência de um sistema esgoto, de saneamento ambiental”, pontua.

Os relatos de Rosimere e Rogério compõem um obscuro cenário vivido em todo território brasileiro. Cerca de 35 milhões de brasileiros e brasileiras não têm acesso à água potável, de acordo com o Instituto Trata Brasil. O estudo, divulgado no fim de março e que analisou registros do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério do Desenvolvimento Regional, indica ainda que cerca de 100 milhões de pessoas não desfrutam do serviço de coleta de esgotos no país – o equivalente a quase metade da população brasileira.

“A ocupação urbana de Fortaleza foi desordenada, nascentes de água foram soterradas, houve desmatamento e contaminação dos rios por ausência de saneamento. E nós percebemos que a falta de acesso ao saneamento básico de qualidade gera um agravamento das condições de saúde. As pessoas sofrem com doenças que poderiam ser evitadas. O esgoto correndo na rua leva perigo à saúde. A Grande Bom Jardim é uma região que teve – e ainda tem – muitos casos de COVID-19 e mortes por conta dessas condições sanitárias”, argumenta Costa.

Visita realizada em 2020 pela equipe da “Campanha pelo Saneamento Já no Grande Bom Jardim” à estação de tratamento de esgoto Tatumundé, que não foi concluída e está abandonada Arquivo/CDVHS

Ainda antes da chegada da pandemia, que neste mês de junho ultrapassou as 500 mil mortes no Brasil, o trabalho de Rosimere junto às mulheres residentes na periferia já evidenciava a necessidade urgente de se garantir o acesso à água potável e saneamento de qualidade. “A pandemia chegou, mas a gente já vivenciava uma situação precária de saúde. Há anos nós temos uma luta grande por água e saneamento, pois a periferia já vivia um surto de casos de dengue, de zika vírus, da chikungunya. E essas situações afetam mais ainda as mulheres numa sociedade em que elas são tidas como responsáveis por criar as crianças, cuidar do lar, cuidar de quem adoece”, explica.

O cuidado em comunidade

Cerca de 21 milhões de pessoas da região Nordeste do Brasil tem atendimento precário ou não contam com nenhum atendimento na coleta e tratamento de esgoto, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA). Além de terem consciência que a mobilização coletiva junto aos poderes públicos é o principal caminho para a garantia desses direitos, Rosimere e Rogério vão além: constroem, junto com outras companheiras e companheiros da sociedade civil organizada, caminhos solidários de preservação da vida.

Rosimere conta que o trabalho do Fórum de Mulheres de Pernambuco se dá em diversas frentes, mas sem deixar de se preocupar com o que cada mulher sente em meio a todas as demandas. “Nós começamos um trabalho de autocuidado com as mulheres das periferias e com as companheiras do FMPE. Toda semana nos dividimos e ligamos umas para as outras para perguntarmos ‘Como você está hoje? Precisa de algo?’. E esse acompanhamento da saúde emocional tem sido determinante para enfrentarmos as questões da pandemia, do racionamento de água e de tantos outros problemas e responsabilidades que nos são atribuídas”, relata Rosimere.

Ação organizada pelo Fórum de Mulheres de Pernambuco cobra atenção sobre a violência contra a mulher durante a pandemia, em Ouricuri, Sertão do Araripe (PE). Foto: Divulgação/FMPE

O cuidado coletivo também faz parte da dinâmica dos moradores da Grande Bom Jardim, em Fortaleza. Em 2012, os movimentos sociais e a população da região identificaram uma área com duas lagoas e carnaubal e enfrentou uma batalha para transformar a área em um parque protegido. Em 2015, depois de três anos de luta, foi oficializado o Parque Urbano Lagoa da Viúva.

“Grande parte da população de Bom Jardim tem relação com a terra, gosta de ter um quintal, cultivar plantas medicinais e frutíferas. Isso tudo ajuda bastante a manter sua saúde, qualidade de vida e autoestima. Às vezes nos canteiros centrais da rua as pessoas cultivam também para manter a relação da natureza. E isso é também uma forma de cuidado para toda a sociedade, um exemplo a ser levado em meio a tanta destruição”, finaliza.

As profundas desigualdades existentes no Brasil têm na concentração da terra e da água uma das principais causas, razão pela qual a CESE, desde sua fundação, tem apoiado as mais variadas iniciativas protagonizadas por uma diversidade de grupos populares que organizam para que os direitos por terra, água e território sejam garantidos e respeitados.

* Por Rafael Oliveira