Carta da Missão Ecumênica: entre tambores, sinos e maracás, em defesa dos direitos

Carta da Missão Ecumênica

…e converterão suas espadas em lâminas de arados, e suas lanças em foices. (cf Is 2.4)

“Transformar a maldade da bala em bondade.” (Anacleta Pires – liderança quilombola)

Entre tambores, sinos e maracás, dos dias 4 a 6 de setembro de 2023, missioneiros e missioneiras de diferentes organizações ecumênicas, igrejas e movimentos de direitos humanos foram acolhidas e enviadas pelas Caixeiras do Divino, em São Luís, capital do Maranhão, para a realização a 5ª Missão Ecumênica em defesa de Direitos.

Sob a inspiração do Salmo 103.6, que diz: “O Senhor faz justiça e defende a causa dos oprimidos”, a missão assumiu a escuta ativa das vozes, expressas em canções e poemas que denunciaram as inúmeras violações de direitos que ocorrem nos territórios de comunidades quilombolas, povos indígenas, de terreiros, quebradeiras de coco babaçu, pescadores e pescadoras, mulheres negras, trabalhadores e trabalhadoras rurais e contra as comunidades LGBTQIAPN+.

Cada voz ecoada, além das denúncias, mostrou a força, a resiliência e a vitalidade dessas populações na afirmação de “que esta terra tem donos e são eles e elas: indígenas e descendentes dos povos africanos”. O som dos tambores e dos maracás ecoam as espiritualidades que se unem e formam a resistência destes e destas que lutam por seu direito ao território, educação e respeito às tradições ancestrais. Cada criança, jovem, mulher, homem, pessoas mais velhas que resistem aos projetos econômicos de expansão derrubam os véus que querem invisibilizar e apagar os impactos e violências causados pelo projeto colonialista que forjou o Brasil como nação às custas do sangue de indígenas e povos africanos.

No Quilombo Santa Rosa dos Pretos, fundado por sete mulheres africanas lideranças ancestrais sequestradas de suas terras há 347 anos, ouvimos: “Eu sou filha da Mãe África e cresci em um Quilombo. Me sequestraram de África para viver perseguição”. A comunidade, ao longo destes mais de três séculos, viveu da produção de arroz e da pesca. O espírito de coletividade, ensinado pelos ancestrais, foi fundamental para manter o quilombo vivo. Hoje, 2023, a comunidade luta para manter viva a sua cultura e sua história, por causa de quatro forças e projetos destrutivos.

A primeira é a duplicação da BR 135 cuja função é escoar a soja produzida por um latifúndio de monocultivo, destruidor de biomas. A segunda é a ferrovia Carajás, criada para transportar o ferro retirado do solo pela Mineradora Vale do Rio Doce. A construção desta ferrovia acabou com o Igarapé Simauma onde, antigamente, se pescava. A terceira força é a grilagem, em que invasores declaram como privada uma propriedade que nunca lhes pertenceu. A quarta força destruidora é a Linha de transmissão Itapecuru Mirim – Vargem Grande, que acabou com o cultivo de arroz que era socializado na alimentação coletiva.

Os mais velhos falam de um tempo de fartura, que hoje, os projetos desenvolvimentistas impactam e comprometem a sustentabilidade da comunidade. O forte espírito de coletividade e parceria resistem na preservação dos valores civilizatórios herdados dos povos africanos de Guiné Bissau.

No terreiro Casa Fanti-Ashanti, fomos recebidos por Mãe Kabeca de Xangô com grande generosidade e muito toque de tambor. Ali, realizamos nosso “Ubuntu – Abrace um Terreiro”.  Ouvimos sobre as histórias de perseguição e do quanto o racismo religioso afeta a saúde dos mais velhos e mais velhas e das lideranças religiosas dos terreiros maranhenses. Como lideranças cristãs em missão, nos comprometemos com o direito à expressão e de liberdades religiosas dos povos de terreiro.

Com o canto “um abraço negro, um sorriso negro, traz felicidade”, abraçamos todo o povo do Terreiro como afirmação de que, no Brasil, o antirracismo precisa ser pilar do diálogo inter-religioso.

A Audiência Pública, realizada no dia 5 de setembro, somou-se a esses povos e comunidades tradicionais na incidência por direitos junto ao poder público local, que deveria responder às principais reivindicações destes grupos. As representações comunitárias estavam todas presentes. Exigiram respostas das autoridades frente ao racismo religioso, à não demarcação de quilombos, ao não cumprimento das políticas para mulheres, à não realização de consultas livres, prévias e informadas, conforme prevê a Convenção 169 da OIT. Foi denunciada ainda a forte influência política de parlamentares estaduais no estímulo a práticas fundamentalistas e antidireitos dos povos tradicionais de terreiro no Estado. Infelizmente a segunda parte da audiência, que previa a participação de representantes do Governo do Estado e instituições do sistema de justiça, não pôde ser realizada, pela ausência da maioria das representações, que tinham sido convidadas com bastante antecedência.

Na fila do povo, ecoou a denúncia do descompromisso deliberado do Estado, em especial, na implementação de políticas públicas antirracistas que reconheçam as espiritualidades e demarquem territórios indígenas e quilombolas.

Encerramos esta missão ecumênica ao som de tambores, sinos e maracás com a certeza de que o povo organizado já transformou a maldade da bala em bondade ao mostrar que projetos de bem viver são reais e possíveis. Ao mesmo tempo, retornamos aos nossos lugares com o sentimento de que as espadas ainda não foram transformadas em arados, pois as forças destrutivas seguem articuladas e sendo beneficiadas por privilégios.  Por isso, ao nos despedirmos do Maranhão, mantemos viva e ativa esta Missão Ecumênica, pois estamos comprometidos e comprometidas em fazer ecoar a voz de cada quilombo, território indígena e locais sagrados dos terreiros nos espaços políticos onde temos incidência.

Entre tambores, sinos e maracás, em defesa dos direitos – Por um Brasil antirracista!

Sao Luís, 05 de setembro de 2023