‘Extinção do Consea é apenas ponta do iceberg’ – Entrevista exclusiva sobre banquetaço, alimentação saudável e revogação de MP

Entre cheiros, sabores e cores de uma mesa posta por várias mãos solidárias, movimentos sociais, organizações populares, voluntários/as do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), acadêmicos e estudantes realizam o “Banquetaço” contra a extinção do órgão. No dia 27 de fevereiro, quarta-feira, será organizado um banquete coletivo em mais de 15 cidades de todo o país. Em Salvador (Bahia), a atividade acontecerá no Porto da Barra, a partir das 10h, em frente a Casa Mídia Ninja.

A iniciativa contará com várias atividades culturais seguidas do “banquetaço”, preparado por chefs de cozinha da cidade, nutricionistas, gastrônomos e militantes que defendem o direito humano à alimentação.  A programação inclui a oferta gratuita de alimentos saudáveis à população que visitar o local, assim como informações, apresentações e roda de conversa.

O Banquetaço é um movimento nacional suprapartidário e tem por objetivo chamar a atenção da sociedade, da imprensa e do poder público (deputados, senadores e Ministério da Cidadania) para a importância do Conselho, que foi extinto pelo atual presidente, no primeiro dia do mandato por meio da Medida Provisória nº 870.

Para entender melhor sobre a importância do ato, conversamos com Sandra Chaves, ex-conselheira nacional do Consea, doutora em Administração Pública, mestre em Saúde Comunitária e professora da Escola de Nutrição da UFBA; e Carlos Eduardo Leite, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea)/Bahia e coordenador executivo do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (SASOP).

Para os entrevistados, o evento é uma forma criativa de dar o recado para a sociedade sobre a manutenção do Consea e o direito à alimentação adequada, saudável e livre de veneno. Para a professora da Escola de Nutrição da UFBA, o ato mostra a importância de se ter uma agenda de política de segurança alimentar e nutricional, “dando oportunidade de acesso à informação sobre tudo isto, sobre os prejuízos potenciais, sobre o que já vem acontecendo e as perspectivas”, afirma.

Segundo o coordenador do SASOPalimentar-se também é um ato político. “A partir do momento em que você escolhe o que você quer comer; que você tem a oportunidade de escolher entre um alimento saudável e um alimento envenenado, você está exercendo uma posição de cidadania”.

CESE: A programação do banquetaço estará presente em todas as regiões do país neste 27 de fevereiro. De que forma essa ação pretende sensibilizar a sociedade para a importância de uma alimentação saudável e ainda trazer à discussão a revogação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea)?

CARLOS EDUARDO: O banquetaço tem um aspecto importante, porque é uma inovação na forma de se manifestar publicamente, oferecendo alimentação saudável, em praça pública, para a população e para quem está se mobilizando em torno dessa iniciativa. Pegou muito esse banquetaço! É um momento de denúncia, mas também de explicitação dos ganhos, porque todos os produtos mobilizados vêm da agricultura familiar, da produção agroecológica. Há uma integração entre agricultores familiares, comunidades tradicionais com as pessoas que consomem na cidade.

Esse debate nas grandes cidades é fundamental porque a maior parte da população do Brasil está nos grandes centros e a gente tem que ganhar as pessoas da cidade para essa luta.

CESE: O que perdemos com a extinção do Consea?

SANDRA – Perdemos história e conquistas, porque o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional, que foi construído desde 2003 (e mais institucionalmente em 2006, com a lei orgânica da SAN), resulta de muitas lutas, denúncias e enfrentamentos.

A trajetória da criação do CONSEA se mistura com a própria reconquista da democracia no país e com uma forma de compreender e agir para promover direitos e reduzir desigualdades.  Isto porque uma proposta surge em 1986, como base para a Assembleia Nacional Constituinte, é retomada e o primeiro CONSEA foi criado em 1993, após o impeachment de Collor de Melo, em um momento importante do movimento da Ação da Cidadania, contra a fome e a miséria e pela vida. Depois, o CONSEA foi extinto nos primeiros dias do primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso e só vai ser recriado em 2003, no primeiro mandato do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, quando o combate à fome e à pobreza alcançaram o topo da agenda política.

Quando um país desigual como o Brasil perde em democracia (em espaços participativos plurais para pensar, monitorar e avaliar políticas públicas), seus cidadãos perdem direitos, especialmente o de participar da arena pública para garantir e demandar direitos.

Por toda a experiência exitosa acumulada, a possível extinção do Consea coloca em perspectiva perdas no campo da ação pública de interesse para o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional. Organismos internacionais reconhecem que o conjunto de políticas sociais de combate à pobreza e à fome implementadas entre 2003 e 2014, parte delas propostas nas conferências nacionais e debatidas no CONSEA, foram responsáveis pela retirada do país do mapa da fome. Onde estas políticas serão construídas, debatidas? Por outro lado, já se sabe que parte do aparato institucional que foi criado para gestão dessas políticas também está sendo desmontado e, seus técnicos, portadores da cultura organizacional na área, ou foram demitidos ou realocados.

CESE: Em outros espaços, Caê, você já classificou a revogação do Consea como a ponta do iceberg. O que está por trás da extinção do Conselho?

CARLOS EDUARDO: A Lei que cria o Consea (11.346 de 2006) ela não cria só o Conselho, mas todo o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Esse sistema tem três órgãos fundamentais, que é a Conferência Nacional de Segurança Alimentar, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar. Como sistema, da mesma forma que é estruturado nacionalmente, ele deve ser estruturado nos estados e municípios.

Nós conseguimos incorporar na legislação brasileira o direito humano à alimentação. Nem a Constituição de 1988 incluía a alimentação como um direito. Então, a partir do momento em que você desestrutura um sistema, com a retirada de um dos seus componentes (no caso, o Consea, que é o órgão de controle social da política), você passa a ter um sistema que não funciona bem.

Uma vez, uma criança fez um desenho que para mim traduziu tudo que a gente quer dizer, representando o Consea como o guardião da comida de verdade. E por que ela chamou o Consea de guardião? Porque ele é o espaço em que há participação da sociedade civil organizada, em dois terços. Há uma presidência da sociedade civil – e isso é uma inovação no Brasil. É também uma instância de aconselhamento da presidência da República e o governo Bolsonaro o substituiu por 2 conselhos: o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional. Então esse é um dado importante, simbólico e estratégico, que  sinaliza a política desse atual governo. Ou seja, o presidente quis dizer: eu não tenho interesse em ser assessorado pela sociedade civil  para exercer uma política de combate à fome no Brasil.

Agora vamos lutar para que a gente garanta a revogação dessa Medida Provisória. Nós temos uma série de emendas já a essa MP. Então a luta não para por aqui. Por isso que os banquetaços têm um papel estratégico de mobilização para que a sociedade faça pressão não só junto ao governo, mas para que outros setores que ainda não estejam sensibilizados possam tomar consciência da realidade que estamos vivendo.

É importante mostrar que o desmonte não vem só dessa medida do presidente Bolsonaro. O desmonte veio a partir do golpe, a partir do momento em que você acaba com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, restringe o Bolsa Família, é interrompida toda a política de abastecimento hídrico através das cisternas no Nordeste no governo Temer. Então, a gente precisa olhar essas medidas dentro de um processo. É um processo do golpe de 2016 que vai se concretizando cada vez mais e se consolidando.

CESE: O Brasil é um dos países que mais consome agrotóxicos no mundo. Desde o primeiro dia do governo Bolsonaro, já foram liberados 57 novos agrotóxicos no mercado brasileiro.  Quais são os principais efeitos para a saúde humana?

SANDRA: O documentário “O veneno está na mesa” já denunciava o tamanho do problema alimentar brasileiro devido ao uso de agrotóxicos, muitos deles banidos nos países de origem. As formas de exposição atingem os trabalhadores (exposição ocupacional, alimentar), resíduo de agrotóxicos em alimentos, e ambiental (contaminando ar, água, chuva, solo, domicílio, agropecuária).

As intoxicações podem ser do tipo agudo, sub-agudo ou crônico. Os nexos causais são, por vezes, difíceis de serem estabelecidos, demandam pesquisas caras, de longo prazo, e faltam financiadores. Mas existem financiadores (as indústrias produtoras dos venenos) para apoiar projetos que mostrem os benefícios para a produção de alimentos, maior tempo de prateleira etc.

Em termos de saúde humana, agravos intestinais, doenças de pele, alterações hepáticas e renais, doenças neurológicas, imunológicas e até quadros clínicos psiquiátricos têm sido relacionados ao contato/consumo com agrotóxicos. O crescimento dos casos de cânceres (mama, ovário, próstata etc..) está sendo relacionado por estudiosos ao consumo exacerbado e duradouro destes produtos. Somos o que comemos e comemos muita coisa e muitos alimentos contaminados.

Considerando dados de 2010, da ANVISA- MS, para 24 estados brasileiros, 4,2% das amostras de alfaces estavam reprovadas pelo teor de agrotóxicos; o mesmo para 49,6 % das amostras de cenouras e 63,4 % das amostras de morangos. Estes resultados foram antes da mudança do papel da ANVISA no processo de liberação e de toda esta política de abertura ao veneno produzido no mundo – com recolhimento também, e isto é muito importante, dos investimentos para a agricultura familiar, orgânica, e para a agroecologia. Precisamos saber mais sobre isto e divulgar.