Formação promovida pela CESE discute relações entre raça, gênero, território e sistemas alimentares o Cerrado

No Brasil, as comunidades tradicionais são as responsáveis pela produção de alimentos que conservam a sociobiodiversidade dos biomas. No Cerrado, a diversidade de plantas manejadas, o roçado, os arranjos produtivos locais, a transmissão de saberes, o cultivo e o consumo, expressam a relação com os territórios e condição de permanência neles. Isso é resultado histórico de resistência ao padrão de poder colonial, que até hoje mantém sua existência através do modelo de desenvolvimento vigente, predatório e extremamente excludente.

Em centenas de anos, quilombolas, indígenas, extrativistas, quebradeiras de coco, ribeirinhas e diversos outros povos, criaram suas formas próprias de organização e interação com os espaços, e resistem às estruturantes opressões e desigualdades da sociedade.

Para aprofundar o debate em torno do reconhecimento do quanto as violências nos territórios têm uma relação intrincada com as intersecções de gênero e raça, e afirmar a importância das formas de produção que as comunidades tradicionais trazem acerca dos saberes relacionados ao equilíbrio das dimensões política, social e ambiental, a CESE realizou mais uma Formação: Racismo, Gênero, Território e Sistemas Alimentares no Cerrado, em parceria com o Instituto Ibirapitanga.

A atividade aconteceu presencialmente em Brasília (DF), contou com a participação de dez organizações e grupos do Cerrado, e foi dividida em três grandes momentos, entre eles, o Encontro, o Intercâmbio e a Oficina Elaboração de Projetos.

Os trabalhos foram abertos com uma mística composta por panos africanos, bandeiras, camisas e publicações, simbologias trazidas pelos/as participantes para expressar as experiências e as trajetórias de lutas. Com o ambiente de identificação coletiva, as trocas sobre os desafios e as estratégias da conjuntura possibilitaram o reconhecimento da luta articulada para enfrentar as formas como o machismo, o racismo e outras violências estruturam os territórios.

Ao ouvir os relatos dos/as companheiras/ as da formação, Ana Patrícia do Nascimento, integrante da Associação da Comunidade Negra Rural Quilombo Ribeirão da Mutuca, percebeu a coletividade de pessoas que sofrem e resistem com as mesmas opressões: “Estamos há milhares de anos nas nossas comunidades, vivendo e produzindo em comunhão com a natureza, garantindo o sustento de nossas famílias e a preservação do território. A luta é a mesma de quem vive nos quilombos, nas aldeias e nos rios.”, afirma a representante quilombola, que também faz uma análise dos aspectos econômicos, raciais, culturais e até mesmo religiosos que interferem na dinâmica das comunidades: “É sempre o homem branco, rico e cristão que quer enquadrar todo mundo e impor suas regras.”.

Nesse mesmo sentido, Jânio Avalo, do povo Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, também traz falas sobre resistência indígena frente ao processo histórico de colonização e massacre dos povos: “Esse momento nos traz um autoconhecimento da história nacional. Reforça a nossa luta por direitos e nos faz perceber que não estamos sozinhos/as. São lutas semelhantes de invisibilidade, genocídio, mas também de muita força resistência e existência.”

Intercâmbio Comunidade Quilombola de Mesquita

Mandioca, milho, laranja, cana de açúcar, verduras, hortaliças, viveiros de mudas, plantas medicinais fazem parte do plantio e produção da Comunidade Quilombola de Mesquita. O território se localiza na divisa entre Distrito Federal e Goiás, tem 276 anos e abriga aproximadamente 800 famílias. Durante a formação, a turma teve a oportunidade de experienciar a cultura local, como também dialogar sobre história de luta da comunidade e os principais desafios.

Até a fundação e todo o processo de construção de Brasília, a comunidade vivia sem interferências externas. Boa parte das famílias se dedicava à agricultura, criação de animas e feitura dos tradicionais doces de goiaba, a marmelada e a farinha de mandioca. Atualmente, o território tem sido ameaçado por um intenso processo de especulação imobiliária e da monocultura de soja na região. Sandra Braga, liderança local e representante da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), recepcionou os/as participantes da formação e explicou o modo de viver da comunidade e os enfrentamentos diários: “Com a urbanização, loteamentos e condomínios são construídos de forma irregular, sem respeitar o meio ambiente. Estão desmatando e poluindo água. Há grandes latifundiários que estão dentro de Mesquita plantando soja e usando uma quantidade absurda de agrotóxicos.”, relata Sandra.

A imersão na realidade da comunidade permitiu que Jânio Guarani Kaiowá refletisse sobre seu território e a insegurança alimentar causada pela violências e opressão por parte de pistoleiros e por grandes produtores de soja, cana-de-açúcar ou gado para exportação. “Para nós indígenas, a alimentação é sagrada. E o sagrado está sendo desrespeitado e violentado pelo veneno das monoculturas. Estão tentando nos impedir de produzir de forma saudável, de plantar para sobreviver e ter autonomia.”.

No entanto, a preservação do Cerrado sempre foi um papel desempenhado pelos/as quilombolas, como o reflorestamento com plantas frutíferas do bioma, a utilização de adubos orgânicos e o controle de pragas com chás e produtos naturais. É no seu próprio modo de viver, na relação harmônica com o meio ambiente, nos costumes, na comida e na história que famílias do Mesquita e todas as comunidades tradicionais do Cerrado lutam pelo direito de permanecer no seu território. “Continuamos na resistência pelo nosso território e por nossa identidade cultural.”, declara a representante do CONAQ.

Oficina sobre Elaboração de Projeto

Além de discutir como as questões estruturantes afetam a vida dos povos e comunidades tradicionais no Cerrado, o encontro também trouxe subsídios para qualificar a elaboração de projetos, através de uma oficina, como uma demanda trazida pelos/as participantes. Essa parte da formação teve como objetivo empoderar os grupos para que se apropriem de ferramentas e acessem recursos do Programa de Pequenos Projetos da CESE, mas também de outros editais.

“Saio dessa formação com muitos aprendizados e vou compartilhar com o coletivo. A CESE é uma parceira que não só valoriza a nossa luta, mas também ajuda no fortalecimento do movimento. Está nos estimulando a fazer projetos para que a gente possa ampliar nossas parcerias.”, descreve Raimunda Nonata, Quebradeira de Coco Babaçu.

Para Mirelly Ythielly Ferreira, da Juventude do Bico do Papagaio do Tocantins, esse momento foi um dos destaques da formação. “Para mim todo o processo de formação foi muito enriquecedor, mas o que mais me chamou atenção foi a oficina de elaboração de projetos. Foi o primeiro contato com o conteúdo e considero muito importante para nossa autonomia. Toda a juventude deveria ter acesso. Tudo que aprendi vou levar para minha comunidade.”, afirma a jovem que representou o Grupo de Trabalho das Juventudes Rurais do Bico.