Mais de 170 etnias indígenas estiveram presentes e acampadas no Distrito Federal, acompanhando a votação no Superior Tribunal Federal do RE (Recurso Extraordinário) 1.017.365, que traz a tese do Marco Temporal, defendida por ruralistas. Prevista para o dia 1º de setembro de 2021, a votação foi adiada na última semana (no dia 26 de agosto) e dada a duração estimada em 10 horas, envolvendo a argumentação e sustentação oral por parte dos advogados, mais uma vez não foi concluída, a decisão foi transferida para 02.09 e posteriormente para 08 de setembro. A CESE apoiou a ida de mais de 200 indígenas de 23 etnias diferentes para Brasília, mobilização fundamental para pressionar o STF e se contrapor ao forte lobby dos ruralistas. A votação já foi adiada outras cinco vezes e a decisão é definidora do futuro da demarcação das terras indígenas no país.  Por todo Brasil, manifestações nas estradas e trechos urbanos trazem visibilidade a luta pelos direitos dos povos originários.

O Marco Temporal, defendido pelos ruralistas e pelo Presidente da República, interpreta que os indígenas só teriam direito às terras em que já estavam sob sua posse em 1988, quando foi feita a promulgação da Constituição Cidadã. Essa tese ignora o longo processo de violação de direitos vividos pelos povos ao longo dos anos, como invasões, remoções forçadas e a expulsão dos seus territórios seja pelo agronegócio, seja pelos garimpeiros. O que tramita hoje no STF é um pedido de reintegração de posse, movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Funai e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da TI Ibirama-Laklanõ. Ao longo do século XX, o território em disputa sofreu reduções, sempre apontadas pelos indígenas e o que for interpretado neste caso servirá de baliza para outras situações, fixando uma tese de referência. A discussão do STF vai demarcar o alcance do artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece o direito dos povos originários sobre as terras que ocupam competindo à União demarcá-la.

Telma Taurepang

“O maior impacto do Marco Temporal é tirar os nossos direitos. É retroceder no que foi garantido na Constituição de 1988. Essa proposta viola os nossos direitos, ameaça as nossas vidas e o contexto dos povos indígenas” afirma Telma Taurepang, integrante da União das Mulheres Indígenas da Amazonia Brasileira, que está com o povo Taurepang em Brasília. Para a liderança, tantos adiamentos explicitam a pouca prioridade dos direitos dos povos originários frente aos interesses do capital. Toda a mobilização gerada visa chamar a atenção dos Poderes para as vidas indígenas, mas também mobilizar a sociedade. “Para nós, é desconfortável viver debaixo de uma lona sete, oito dias. Mas, por quanto tempo for necessário, nós estaremos naquele espaço sombrio dentro de Brasília e fazendo com que os nossos direitos não sejam mais violados” acrescenta Telma Taurepang.

O acampamento indígena em Brasília tem sido considerado pela imprensa brasileira uma das maiores manifestações de contraposição ao Governo Federal, totalmente intrincado com o agronegócio. “Com o impacto das invasões que vem acontecendo dentro das terras indígenas não tinha como a gente se calar, não tinha como a gente continuar nas nossas bases sendo atacados. Nossas terras indígenas vêm sendo invadidas por madeireiras ilegais, por garimpeiros, que vem acontecendo mais diante das falas do presidente. Toda essa fala dele faz com que aumente ainda mais o perigo e a violência nas terras indígenas” desabafa a liderança, que também está envolvida com a Marcha das Mulheres Indígenas, programada para o período de 7 a 11 de setembro em Brasíliia.

Ana Patté Xoklen durante o acampamento #LutaPelaVida. Crédito:@midiaindiaoficial

Ana Patté, do povo Xokleng e integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, compartilha a preocupação com a possibilidade de novos adiamentos e manobras políticas, que podem tornar ainda mais extenuante o processo de mobilização. “O nosso medo é que algum ministro peça as vistas do processo e atrase tudo novamente.  A gente está ali numa mobilização, que já vai durar quase dois meses” desabafa a liderança. Segundo ela, tem sido fundamental o suporte de parceiros e apoiadores, que geraram as condições mínimas para presença dos povos indígenas ser efetiva na Praça dos Três Poderes. “A gente tem que contar com os apoiadores para custear alimentação, ônibus e não tem sido fácil, mas a gente está numa expectativa positiva que os ministros serão coerentes com as terras indígenas. É o mínimo que se faz depois de tantos retrocessos que já aconteceram aos povos indígenas” declara Ana Patté.

PL-490 – Além da decisão em julgamento no STF, na Câmara dos Deputados tramita o Projeto de Lei que busca instituir o marco temporal, o PL-490. Em declaração ao Jornal Folha de São Paulo nesta terça-feira, dia 31.08.2021, o relator da proposta na Comissão de Constituição e Justiça, o Deputado do DEM Rodrigo Maia sinalizou que mesmo que a decisão do Supremo seja contrária à tese, nada impedirá seu avanço e possível aprovação no Congresso. Segundo a integrante da APIB, “O PL-490 é um projeto de lei criado pela bancada ruralista e tem por objetivo trazer mais retrocesso para as comunidades indígenas. Ou seja, a questão de demarcação de terras indígenas: aquelas que já foram demarcadas seriam revistas e aquelas que estão em processo de demarcação nem seriam demarcadas”. Em sua avaliação, seria um significativo retrocesso nos direitos indígenas conquistados, uma verdadeira ofensiva, que se abateria principalmente entre os povos mais isolados, consequentemente, mais vulneráveis em sua autonomia. “Eles dizem que é sobre a autonomia dos povos indígenas para que possam explorar as terras indígenas. Esse não é o objetivo nosso! Temos uma visão super diferente sobre terra em relação à dos brancos. A gente tem a visão do cuidado de proteção, enquanto eles não. Eles pensam em exploração, por isso querem tanto passar um projeto de lei que é totalmente inconstitucional, que não atende as demandas dos povos indígenas”, comenta a indígena.

O que está em jogo tanto no STF quanto no Congresso é o reconhecimento ou a negação do direito fundamental dos povos originários: o direito à terra. A visão que só considera a presença indígena na terra a partir da Constituição de 1988 ignora todo o processo histórico deste o período colonial até as disputas e crimes mais recentes, durante a ditadura. Caso seja aprovada, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, o que abre campo para extermínio dessas etnias, além de ser mais um estímulo à invasão dos territórios em processo de demarcação.  No Brasil, há pelo menos 303 processos em andamento, aguardando desfecho.