Liberdade religiosa não é liberdade de contaminação. Por Magali Cunha

Fonte: Carta Capital

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Nestes dias em que novas ações de isolamento social foram implementadas, especialmente em capitais duramente atingidas pela pandemia, lideranças de igrejas insistiram em confrontar as autoridades públicas demandando “liberdade de culto”. Na semana passada, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) apresentou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela liberação de celebrações religiosas presenciais na pandemia, contrariando as medidas preventivas de isolamento.

Julgada pelo ministro Kassio Nunes Marques, recentemente nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro para o órgão máximo do Poder Judiciário, foi dado o ganho de causa e as igrejas tiveram liberdade para abrirem suas portas, independentemente das orientações em suas respectivas cidades.

Não vamos aqui discutir a avaliação jurídica de que Nunes Marques concedeu a ação a um organismo religioso que não pode apresentar uma ADPF ao STF por congregar “associados não vinculados a uma única e homogênea categoria profissional ou econômica”. Portanto, é uma associação ilegítima para propor este tipo de ação. Isto foi declarado pelo próprio STF. As palavras entre aspas estão na decisão, em plenário, por unanimidade, incluído o próprio Nunes Marques, em outra ação da ANAJURE, pleiteando a mesma demanda, em fevereiro.

Também não vamos discutir que desta vez, a coisa foi feita no feriado da Semana Santa, no plantão em que Nunes Marques deliberaria sozinho, justamente nos dias de maior gravidade da pandemia no país. O Brasil atingia naquela Sexta-Feira da Paixão a marca de 328.206 mortes, e 13 milhões de contaminados.

Interessa-nos aqui refletir sobre o argumento da ANAJURE para a ação e o texto da decisão de Nunes Marques que alega que é possível “harmonizar a liberdade religiosa com as medidas preventivas exigidas pelo contexto pandêmico”, e afirma “a essencialidade das atividades desempenhadas pelas igrejas, responsáveis, entre outras funções, por conferir acolhimento e conforto espiritual”.

Desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, há mais de um ano, temos assistido intensos embates discursivos entre líderes religiosos e autoridades públicas contra as medidas restritivas que implicam o fechamento de templos religiosos entre outros estabelecimentos.

Diversos foram os templos que violaram as normas preventivas e realizaram atividades presenciais. Muitos dos infratores provocaram aglomeração e não ofereceram os cuidados sanitários necessários para atividades em grupo. Isto pode ser visto em vários registros de imagens nas mídias sociais das próprias igrejas, em postagens de denúncia e em matérias jornalísticas. Isto pode explicar o significativo o número de pastores e pastoras mortos por Covid-19.

A liberdade religiosa e de culto, reconhecida como um direito humano (artigos 19 e 20 da Declaração Universal dos Direitos Humanos), consta na Constituição do Brasil no art. 5º: “inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.

Isso significa que ninguém pode ser privado de qualquer direito (discriminado, segregado) por conta de sua crença religiosa. Em decorrência, o Estado não deve realizar atividades religiosas nem manter com grupos religiosos relações de dependência ou aliança, a não ser que haja colaboração de interesse público (por ser laico). Ainda, o Estado não deve colocar impedimento às atividades religiosas (por não ser ateu). Tudo isto consta está previsto nos artigos 19, 150, 210, 213, 216 da Constituição.

No Brasil, grupos cristãos católicos, evangélicos, ortodoxos, não podem alegar violação desta liberdade. São livres para cultuar, a ponto de termos em grandes cidades, praticamente, uma igreja em cada esquina. É fato que são registrados casos de discriminação contra cristãos, mas pontuais, resultado de atitudes de intolerância religiosa.

No entanto, há um grupo religioso que pode reivindicar a não garantia plena deste direito pelo Estado brasileiro, o de matriz afro-religiosa. Terreiros de candomblé, de umbanda e outros grupos sob esta tradição, têm, historicamente, em diversas partes do país, sofrido impedimentos para realização de suas práticas. Isto se agrava com violência física, psicológica e simbólica imposta a seus espaços sagrados e líderes.

Esta violação da liberdade religiosa das religiões de matriz afrodescendente no Brasil é parte da estrutura racista que compõe a formação do país, assentada na colonização, no latifúndio, na escravidão. O assalto à liberdade religiosa afrodescendente é resultado, sim, do descaso do Estado com as políticas que garantem este direito, inclusive os processos educacionais.

No entanto, alguns líderes têm alegado, aos gritos, em mídias sociais, que as igrejas estão sendo perseguidas na pandemia por governantes que fazem como o imperador Nero, no passado. Estas pessoas negam a compreensão de que as medidas são parte de um conjunto de ações de isolamento social diante da pandemia de Covid-19 que ameaça todo tipo de pessoa, crentes e não crentes. O coronavírus não tem religião, a ele interessa a liberdade de contaminação.

O isolamento é um meio proposto por autoridades públicas, recomendado em todo o mundo, ouvidas as autoridades sanitárias, incluída a Organização Mundial de Saúde. Há aqui um direito fundamental que é colocado sobre todo qualquer outro: a vida e a saúde.

Os cultos religiosos, em comunidade, presencialmente, são fundamentais para o cultivo da fé, de acordo com as bases doutrinárias de todos os grupos confessionais. Porém, não são a única forma de manter uma comunidade unida. Em países em guerra, ao longo da história, grupos religiosos encontraram formas seguras de estarem em conexão e cultivarem sua fé sem colocar em risco a integridade física de seus irmãos e irmãs.

Com a Covid-19 o sentido é o mesmo. É como uma guerra contra um inimigo que não enxergamos. Toda e qualquer medida de preservação de vidas deve ser abraçada por quem se declara seguidor do Deus da Vida. É preciso debelar a falácia de que há uma perseguição a igrejas com ações de isolamento. Não há. Há responsabilidade com o direito à vida e tentativa de salvação.

A liberdade religiosa não se afirma apenas com reuniões cúlticas presenciais. É possível praticar a comunhão de forma alternativa, seja por meios eletrônicos ou por formas de comunicação segura que mantenha viva a comunidade. Vale lembrar que estas lideranças que gritam por liberdade religiosa ocupam, há décadas, amplos espaços de mídias eletrônicas, rádio, TV, internet, concedidos pelo Estado brasileiro, sem qualquer barreira.

É urgente demolir a arrogância de autoridades religiosas que impõem a compreensão de quem sem elas e seu protagonismo num altar-palco, Deus não age; de igrejas que atuam para se impor no espaço público com a imagem de grandes templos cheios de gente.

A liberdade religiosa existe no Brasil e não deve ser atrelada a aglomerações. Deveria ser praticada nestes tempos na presença consoladora junto das famílias enlutatadas, nas orações por pessoas doentes, na celebração da vida de quem está sobrevivendo, na partilha de alimento, remédios, roupas e outros elementos básicos para quem vive em situações sub-humanas. Não há qualquer impedimento a estas ações.

Vale informar que países que têm políticas responsáveis para enfrentamento da Covid-19 reconhecem as práticas religiosas de alívio do sofrimento como essenciais e colocam até mesmo líderes religiosos que as desenvolvem na lista grupos prioritários para a vacinação.

Na tradição cristã, “o Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens” (Atos 17.24). As igrejas, enquanto forem necessárias as medidas de preservação das vidas, deveriam seguir este Deus.

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Magali Cunha é jornalista e doutora em Ciências da Comunicação, coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Religião da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM), membro da Associação Internacional em Mídia, Religião e Cultura e da Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC).

Fonte: Carta Capital

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