Mulheres do Cerrado discutem sobre gênero e raça nos seus territórios

Iniciativa da CESE fortalece o debate sobre questões estruturantes e transversais junto a comunidades tradicionais no Cerrado Brasileiro

As mulheres quilombolas, indígenas e de comunidades tradicionais da região nomeada MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) reconhecem que suas lutas por direitos começam dentro de casa e se avolumam no território e para fora.  São muitas as camadas de luta quando enfrentam o Racismo e o Machismo e isso se adensa quando somadas outras interseccionalidades como orientação sexual. Um debate caloroso sobre esses temas ocorreu durante os três dias da oficina intitulada “Gênero e Raça no MATOPIBA: e nós, mulheres com isso?”, realizada pela CESE, nos dias 19, 20 e 21 de julho. A iniciativa integra o projeto “Fortalecendo as organizações do Cerrado no enfrentamento ao racismo”, em parceria com a agência de cooperação internacional HEKS-EPER.

Facilitação gráfica: Mônica Santana

Continuidade do seminário com mesma temática, realizado em junho de 2021, a oficina pôde aprofundar a perspectiva das mulheres de comunidades tradicionais no Cerrado sobre como essas questões estruturantes afetam suas vidas e as estratégias possíveis para enfrentar o problema. Com a facilitação de Olga Matos e Rosana Fernandes, assessoras de Projetos e Formação da CESE, o encontro inspirou as participantes a enxergar os pontos comuns nas opressões vivenciadas por mulheres de diferentes tradições e etnias, mas que em conjunto vivem em territórios que estão na mira dos interesses do grande capital, bem como sofrem continuados episódios de racismo estrutural e ambiental.

Na oportunidade, as mulheres deram visibilidade aos seus espaços e estratégias de lutas, que envolvem aprofundar os debates de gênero entre mulheres, mas também buscar a liderança e a influência nos ambientes mistos, junto com os homens. Ao longo dos três dias, elas puderam conhecer mais sobre os direitos e enfrentamentos da comunidade LGBTQIA+, com as provocações trazidas pela ativista Carmem Ribeiro, do Grupo Matizes (Piauí), e trocaram experiências com Beth Cardoso, do CTA Zona da Mata, sobre como conjunto de sistema discriminatório do capitalismo impacta a vida das mulheres. Além de discutir como essas questões afetam a vida das mulheres em seus territórios, o encontro também trouxe subsídios para qualificar a elaboração de projetos, uma demanda trazida pelas participantes.

MATOPIBA – Última fronteira dos avanços do agronegócio no país, no coração do Cerrado Brasileiro, numa região que compreende 73 mil de hectares, concentrando 337 municípios brasileiros, MATOPIBA é o nome da região, que reúne parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Pouco conhecida da maioria dos brasileiros, a denominação representa um projeto de desenvolvimento construído sem ouvir as comunidades tradicionais habitantes desses territórios. Populações que vivem em harmonia com o bioma e as riquezas naturais, ameaçadas pelos gigantes do agronegócio e suas monoculturas.

“O interesse da expansão da fronteira agrícola sobre os cerrados desses estados (MATOPIBA) não é de produzir alimentos, não é para sanar as necessidades no contexto atual de milhões de pessoas que passam fome. Não se fala em soberania e segurança alimentar, ao contrário, a lógica é de consolidação e avanço do agronegócio, de crescimento das commodities, de mercantilização da vida” explica Olga Matos, apresentando o contexto comum em que as comunidades estão inseridas.

Facilitação gráfica: Mônica Santana

Racismo, Sexismo e LGBTfobia – Matriarcas nos quilombos, líderes nas associações comunitárias, pescadoras, produtoras agrícolas, cacicas. As mulheres das comunidades tradicionais lutam para estudar e para estar à frente das discussões e decisões sobre seus territórios. Luta essa que se dá junto aos seus companheiros, mas também diante do estado e do poder econômico. Os desafios são muitos e envolvem muitas camadas de reconhecimento e identidade. De acordo com Amária Campos de Sousa, integrante da – Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins – COEQTO, “o racismo estrutural condiciona a uma limitação ou a total falta de acesso à saúde, educação, transporte público. Isso não é do nada. É um projeto do homem branco, rico do grande capital que quer coibir que nós mulheres, de comunidades tradicionais, negras, indígenas para que não tenhamos acesso aos nossos direitos. Se não temos acesso, não nos fortalecemos”. Ela aponta que conjuntamente com os embates com as forças externas ao território, internamente, as mulheres tenham acesso à educação, além de situações que envolvem violências físicas e psicológica. “Temos nossos saberes tradicionais, mas os saberes acadêmicos e teóricos são essenciais. O racismo e machismo alinhados fazem com não tenhamos acesso a determinadas armas, para nos defender e nos fortalecer”, acrescenta.

Já Mercês Alves, integrante da Comissão Pastoral da Terra do Piauí, indígena Akroa Gamela, acredita que a pandemia, com o agravamento das desigualdades sociais e isolamento provocado, aumentou o impacto das expressões do racismo e do machismo na vida das mulheres. “Antes da pandemia já existia e agora só aumentou. Isso acontece dentro de casa, na escola, nas relações interpessoais, nas relações de trabalho. Muitas mulheres têm suas produções, e os homens administram o recurso das produções” compartilha a participante. Foi consenso entre as participantes, que frequentemente, mesmo quando as mulheres ocupam funções de liderança, não são reconhecidas nos diálogos com o poder público ou nos debates junto às empresas que procuram as comunidades. A companheira Jaíra Honório, da comunidade Vão do Vico e Coletivo das Comunidades do Piauí, conta que “quando há interesse no território, eles chegam primeiro nos homens da comunidade para negociar. Mesmo que uma liderança seja uma mulher. Uma forma de discriminar as mulheres.”

Além do debate sobre Raça e Gênero, a Oficina atendeu a demanda que as participantes trouxeram no Seminário, realizado em junho: observar mais as questões ligadas aos direitos das pessoas LGBTQIA+. Na oportunidade, a ativista Carmem Ribeiro apresentou um breve panorama dos desafios da comunidade: encarando obstáculos que se antepõem desde a vida escolar, ao isolamento das suas famílias, violências corretivas, restrições nas oportunidades de trabalho até mesmo a perda da vida. “O Brasil é o país mais perigoso para uma pessoa LGBT morar. As mulheres lésbicas vivem discriminações e correções dentro do ambiente doméstico. Já as mulheres trans têm no espaço da rua, especialmente na noite, os riscos de vida e a falta de proteção. Tivemos recentemente o caso de uma mulher trans, moradora de rua, que foi incendiada em Pernambuco. Não é um caso isolado: mulheres trans correm risco de vida. O machismo é uma máquina azeitada que não se contenta em tirar vidas, mas destruir as identidades. Muitas vezes as agressões comprometem o rosto das vítimas” situa Carmem.

A cacica Rosivânia Kiriri, do povo indígena Kiriri da Barreiras (BA), contou sua história que envolve tanto a luta para assumir a posição de liderança do seu povo, conquistando a confiança e o respeito da comunidade, além de ser agente de saúde. Depois de dois casamentos e três filhos, ela recomeçou a vida ao lado de uma nova companheira – o que foi visto com preconceito por muita gente. “A gente enfrenta a violência todos os dias. O que me importa é ser feliz. Meus filhos têm grande respeito. Então, a minha felicidade só depende de mim e as minhas contas quem paga sou. Na minha ideia, eu faço é assim, tenho grande respeito pelo povo e eles por mim”.

Facilitação gráfica: Mônica Santana

As mulheres compartilharam como cada segmento consegue se inserir resistindo e avançando seja nas comunidades tradicionais, seja em espaços mais mistos como as articulações nacionais. Inserção resistência, coragem… são muitos os ingredientes usados por cada uma delas. “A gente está quebrando barreiras. Estamos estudando, buscando conhecimento, lutando por reconhecimento através de reuniões, emprego das mídias, fazendo o processo formiguinha. Mas enfim, estamos conquistando espaços” afirma Dilma Regina, da comunidade de Santa Helena e integrante do Movimento Quilombola do Maranhão – Moquibom. Também otimista, Socorro Viana, representante da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Estado do Maranhão (ACONERUQ), conclui lembrando “na questão de estratégias, falo que a união é palavra chave para fazer a diferença. Para que a organização aconteça, precisamos que a mulherada se una”.