Nota da ABB: Contra o Racismo Religioso e pela Justiça Inter-religiosa - CESE - Coordenadoria Ecumênica de Serviço" /> Nota da ABB: Contra o Racismo Religioso e pela Justiça Inter-religiosa - CESE - Coordenadoria Ecumênica de Serviço" />

Familiares evangélicos denunciaram ao Conselho Tutelar de Araçatuba que uma jovem da família estava sofrendo maus-tratos e abuso sexual. A mãe da menina perdeu a guarda da filha de 12 anos depois que a adolescente raspou a cabeça em ritual de iniciação ao Candomblé. Mesmo com a denúncia desmentida por exames e pelo depoimento da menina, a mãe perdeu a guarda da filha para os familiares evangélicos que fizeram a denúncia, acolhida pelo Conselho Tutelar. Anteontem, dia 12, o Ministério Público, instado pelos advogados contratados pela mãe, concordou com a revogação da guarda provisória. Cabe agora ao juiz decidir se a filha volta ou não para a mãe, o que até este momento não aconteceu – mãe e filha seguem separadas por causa do Racismo Religioso.

A demonização das religiões de matriz africana, a discriminação cotidiana sofrida por pessoas de Axé em diferentes espaços, as constantes invasões e depredações de seus locais sagrados de culto e de seus elementos rituais, constituem diferentes expressões do racismo religioso. E isso tem uma história.

Povos indígenas, africanos e seus descendentes foram submetidos a mais de trezentos anos de colonização e escravidão na formação da sociedade brasileira. No período colonial, tanto o catolicismo ibérico quanto o protestantismo francês e holandês serviram de base religiosa para a colonização e escravização de indígenas, africanos e seus descendentes. O protestantismo teve sua presença descontinuada no país depois do século XVII, com o fim das ocupações francesa e holandesa. O catolicismo deteve o monopólio da fé cristã até o século XIX, mas não da religião, pois indígenas, africanos e seus descendentes mantiveram crenças e práticas ancestrais e se apropriaram do cristianismo católico de acordo com estratégias próprias de sobrevivência e resistência ao colonialismo.

No século XIX, o catolicismo se torna a “religião oficial” do Império, com “tolerância religiosa” aos “acatólicos”. Estes eram basicamente protestantes, aportados no Brasil ainda sob vigência da escravidão, muitos originários do sul escravocrata estadunidense, conciliaram com o escravismo, foram donos de pessoas escravizadas e condenaram as crenças e práticas de origem africana da população escravizada ou livre, a quem pregavam conversão.

Com a proclamação da República, é declarada a separação entre Igreja e Estado e a liberdade de culto, usufruída na prática apenas por cristãos católicos e protestantes, enquanto as religiões de matriz africana sofriam perseguição policial e cultural, fruto do enraizamento do racismo e sua expressão religiosa legada pela colonização e evangelização colonialista.

A intolerância contra as religiões de matriz africana é, portanto, uma expressão do racismo, podendo ser nomeada como racismo religioso e atravessa as estruturas do Estado e das igrejas cristãs, católicas e protestantes, no Brasil.

A ocupação das bases e das instâncias superiores da República pela extrema-direita cristã, especialmente do segmento evangélico, é continuidade desse projeto de poder que avança contra a laicidade do Estado, a liberdade religiosa, os direitos humanos e a diversidade cultural do país.

É nesse histórico de colonialismo cristão e domínio fundamentalista que devemos situar o racismo religioso que separou mãe e filha por associação do ritual de iniciação ao Candomblé com maus-tratos, caso similar a tantos outros na história das perseguições às religiões de matriz africana.

Para nós, cristãs e cristãos organizados e representados na Aliança de Batistas no Brasil, o racismo é pecado. Qualquer silêncio de cristãs e cristãos à discriminação contra irmãs e irmãos de religiões de matriz africana é continuidade da obra do colonialismo e uma legitimação das injustiças herdadas da escravidão e reiteradas nas desigualdades de classe, raça, gênero, sexualidade e pertencimento religioso.

Cristãs e cristãos precisam denunciar a expressão religiosa do racismo e se comprometer com o diálogo e a justiça inter-religiosa. Não basta não praticar violências e discriminações ou mesmo condená-las moralmente. É preciso o compromisso ético e político de solidariedade às irmãs e aos irmãos das religiões discriminadas na nossa sociedade. Faz-se necessária uma revisão das matrizes históricas, institucionais, teológicas e pastorais da fé cristã para separar o evangelho de Jesus e a mensagem do Reino de Deus de qualquer roupagem cultural e política colonialista e racista.

Não menos importante, cristãs e cristãos comprometidas e comprometidos com a justiça devem denunciar profeticamente discursos, práticas, pessoas, igrejas e políticos que usam o nome de Deus, a Bíblia e a fé evangélica para oprimir e discriminar irmãs e irmãos de outra fé.

14 de agosto de 2020.

Zózimo Trabuco
Professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia
Membro da Igreja Batista Nazareth e da ABB

Nívia Dias
Presidenta da Aliança de Batistas do Brasil