Na atual conjuntura há desafios globais das relações de cooperação e filantropia para organizações da sociedade civil (OSCs) que atuam no desenvolvimento pela garantia dos direitos e defesa da democracia. No Brasil, o surgimento de novos atores no financiamento público e a multiplicação de fundos comunitários têm apontado uma nova configuração nos processos organizativos e nas disputas por poder e espaço no âmbito da sociedade civil organizada.

Isso desponta como um contexto favorável para novas metodologias nas relações entre OSCs e seus apoiadores. É um processo que não só amplia as possibilidades de acesso a recursos, mas também constrói um exercício de agenda, de poder e de criatividade na gestão e nas decisões dos movimentos sociais e organizações populares sobre suas ações. Além dessas oportunidades, essa nova dinâmica traz consigo dúvidas e inquietações sobre quais são as condições de engajamento nestas relações, limites e possibilidades de atuação direta e influência nas agendas, e os possíveis cenários, sobretudo numa conjuntura pós-pandemia.

Para entender melhor as novas configurações e discutir mais sobre os possíveis caminhos para impulsionar a agenda de direitos através da cooperação, a CESE realizou duas rodas de conversa com a equipe interna e organizações parceiras: “Diálogos sobre a Cooperação e Filantropia para defesa de direitos e desenvolvimento” e contou com a mediação de Julia Esther -Secretária Executiva do PAD e de Domingos Armani – Consultor em Desenvolvimento Institucional para OSCs. Esse debate ocorre em um contexto de novos desafios institucionais, entre eles, a implementação do “Programa Doar para Transformar”, que pretende influenciar as relações de poder Norte- Sul no âmbito da cooperação e filantropia, e também avançar em novas metodologias e métricas que permitam reposicionar o papel das contribuições locais para o desenvolvimento e para o campo de defesa de direitos.

A roda de conversa foi iniciada com um panorama histórico sobre as relações com a cooperação internacional e poder assimétrico entre agência OSCs, marcadas nas últimas décadas pela profissionalização e tecnização das ações apoiadas. Foram abordadas também questões sobre a valorização dos sujeitos políticos que incidem nas transformações sociais; os avanços na filantropia brasileira e as implicações para a sociedade civil organizada ao estabelecer conexões com novos atores.

A convidada da roda Iara Pietricovsky, integrante do INESC e presidente do Fórum Internacional de Plataformas de ONGs (FORUS), fez uma abordagem sobre a complexidade de compreensão dos processos de mudança social. Na percepção dela o poder público e o setor privado têm visto as organizações da sociedade civil como acessórios nos processos democráticos e a disputa por espaço é fundamental para sobrevivência e autonomia: “Precisamos nos reconhecer como poder efetivo, capaz de disputar poder no sentido do reconhecimento da nossa existência, como também na definição das trajetórias, de políticas públicas e decisões que as sociedades vão tomar. A nossa luta é ética e fundamental para efetivar direitos.”, afirma.

Outro aspecto trazido na exposição dialogada foi a tendência das novas estratégias de financiamento para o combate das mudanças climáticas e, mais recentemente, o enfrentamento da pandemia. Nesse sentido Athayde Motta, diretor executivo do IBASE, alerta que as OSCs conseguem ter melhores resultados na influência dessa agenda quando ampliam a discussão internamente e entre todos atores pares desse processo. “É preciso radicalizar a politização do debate. Isso é um fator chave e fundamental.” E chamou atenção para os cuidados com despolitização sobre a cooperação nas questões de emergência da Covid-19: “A pandemia implica violação de direitos que ultrapassa os limites da saúde pública e da vacina. Viola direitos em áreas totalmente diversas como educação, violência de gênero e contra as populações mais vulneráveis. Os impactos são multidimensionais.”

Em concordância com ampliação do debate sobre mudar a lógica das estruturas das relações de cooperação e filantropia, Mércia Alves, representante do SOS Corpo e do Processo de Diálogo e Articulação (PAD), traz a necessidade de colocar como prioridade desta agenda a realidade brasileira no que se refere a questões estruturantes das desigualdades sociais: “O extermínio de populações indígenas, quilombolas e da juventude, e os ataques aos direitos das mulheres, da população LGBTQIA+ e dos direitos humanos são questões que devem ser pautada nas estratégias de cooperação.”.

Para Nina Madsen, da Open Society Foundations, apesar das críticas à abordagem política e a atuação explícita das grandes corporações nas disputas políticas e nos processos decisórios, há também o fortalecimento dos sistemas organizativos de comunidades historicamente marginalizadas: “Há experiências interessantes de reconfiguração desses espaços de filantropia, de tensionamento, com fortalecimento dessa agenda de diversidade, equidade e inclusão para dentro das fundações. A multiplicação dos fundos comunitários é parte disso, o que tem influenciado e tensionado a filantropia por dentro e por fora.”, pontua Nina.

Todas as participações da roda explicitaram nas suas falas a necessidade de mapear o campo filantrópico, em conceitos e conteúdo, por entender que assim como há o fortalecimento político do campo dos direitos humanos e da justiça social, para autonomia e defesa dos modos vida, o termo filantropia também tem sido usado para ações comprometedoras. “Há doadores de diferentes naturezas e as OSCs brasileiras têm condições de fazer uma distinção entre uma filantropia genuína e a àquela criada a partir de termos de ajustamento de conduta, ou que poderia ser chamada de filantropia de marketing. Existe muita reflexão sobre isso, de separar o joio do trigo.”, afirma Aurélio Vianna, consultor com experiência em filantropia, povos e comunidades tradicionais.

O ambiente é amplo e diverso, e debatê-lo é essencial e estruturante na vida das organizações da sociedade civil, sobretudo no atual contexto brasileiro de crise política e humanitária. Fortalecer fundos comunitários e ações solidárias é extremamente importante para sustentabilidade, mas não se pode perder de vista a mobilização por uma sociedade antirracista, feminista e democrática: “É uma disputa por voz, por poder de construir uma agenda e demanda, por ocupar espaço e por trazer resposta aos desafios colocados. Isso tem acontecido com muita potência no Brasil e em outros países do mundo.”, conclui sem esgotar a discussão, Nina Madsen.

Avanildo Duque, que atuou como Coordenador Geral de Programas da ActionAid Brasil por 11 anos, trouxe exemplos de relações de parceria do campo popular como uma forma de valorizar os avanços já realizados, e Rui Mesquita, mestre em Estudos do Desenvolvimento e Ciência Política, apontou para outros futuros possíveis como a criação de mecanismos brasileiros para acesso a recursos públicos e privados como alternativas para fortalecimentos das OSCs.

Na perspectiva de contribuir mais com essa discussão, a CESE e o PAD produzirão uma publicação com a sistematização dessas duas rodas de diálogo. Serão compartilhadas análises e leituras das pessoas convidadas, a partir dos seus locais de falas e experiências do que tem sido atuar na filantropia e no diálogo com a sociedade civil organizada.

Sobre o Programa Doar para Transformar

A CESE está iniciando uma caminhada de cinco anos com Programa Doar para Transformar (Giving for Change), em que internacionalmente envolve oito países do sul global, com a apoio da Cooperação Holandesa. A iniciativa tem entre seus objetivos contribuir para a adoção de práticas mais equitativas no sistema internacional de desenvolvimento, inclusive a partir das ideias de mobilização de recursos nacionais e filantropia comunitária