Em função da pandemia, encontro aconteceu pela primeira vez em formato virtual
Entre os dias 27 e 30 de abril, indígenas de todo o Brasil participaram da primeira edição virtual do Acampamento Terra Livre (ATL). Inicialmente adiado em função da pandemia de covid-19, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) optou por realizar o ATL 2020 em formato virtual.
Os painéis, mesas e debates foram transmitidos ao vivo pelas redes socias da Apib, pelas organizações da Mobilização Nacional Indígena (MNI) e por demais organizações parceiras.
No último dia do encontro, foi divulgado o documento final da 16ª edição do ATL, com uma análise do contexto de ataque que os povos indígenas enfrentam no Brasil e uma série de reivindicações ao Estado brasileiro. Baixe o documento ou confira abaixo:
DOCUMENTO FINAL – ACAMPAMENTO TERRA LIVRE 2020
Nós povos, organizações e lideranças indígenas de todas as regiões do Brasil, impossibilitados de nos encontrar pessoalmente na Grande Assembleia Nacional – o Acampamento Terra Livre – que há 16 anos realizamos na capital federal – em decorrência da necessidade do isolamento social imposto pelo novo coronavírus, a pandemia da Covid-19, realizamos o ATL de modo virtual, com uma grande quantidade de discussões, debates, seminários, depoimentos e lives durante toda essa semana. Resistentes há 520 anos frente a todo tipo invasões, que além da violência física, do trabalho forçado, do esbulho e da usurpação dos nossos territórios, utilizaram-se das doenças como a principal arma biológica para nos exterminar, atacados atualmente pelo pior vírus da nossa história, o Governo Bolsonaro, viemos de público nos manifestar.
Denunciamos perante a opinião pública nacional e internacional, que nós povos indígenas do Brasil, mais de 305 povos, falantes de 274 línguas diferentes, estamos na mira e somos vitimados por um projeto genocida do atual governo de Jair Messias Bolsonaro, que já desde o início de seu mandato nos escolheu como um de seus alvos prioritários, ao dizer que não iria demarcar mais nenhum centímetro de terra indígena, e que as demarcações realizadas até então teriam sido forjadas, e que portanto, seriam revistas.
Bolsonaro, logo que assumiu o governo, editou a medida provisória 870/19, na qual determinava o desmembramento da Fundação Nacional do Índio – FUNAI e suas atribuições, repassando a parte de licenciamento ambiental e de demarcação de terras indígenas ao Ministério de Agricultura, comandado pela bancada ruralista, inimiga de nossos povos, na pessoa da ministra fazendeira Teresa Cristina, a “musa do veneno”. Foi necessário uma grande mobilização da nossa parte e dos nossos aliados para que o Congresso Nacional rejeitasse esse dispositivo administrativo.
Bolsonaro desmontou, por um lado, as políticas públicas e órgãos que até então, ainda que precariamente, atendiam os nossos povos, aparelhando-os com a nomeação de pessoas assumidamente anti-indígenas, como o presidente da Fundação Nacional do Índio, o delegado Marcelo Augusto Xavier da Silva. Este, ex-assessor dos ruralistas na CPI da FUNAI /INCRA, que incriminou servidores públicos, lideranças indígenas, indigenistas e procuradores, publicou no Diário Oficial da União, no último dia 22 de abril de abril a Instrução Normativa n° 09, que “dispõe sobre o requerimento, disciplina e análise para emissão de declaração de reconhecimento de limites em relação a imóveis privados em terras indígenas.” A medida contraria o dever institucional do órgão indigenista de proteger os direitos e territórios dos povos indígenas, uma vez que quer legitimar e permitir a emissão de títulos de propriedade para invasores das terras indígenas. Soma-se a esta determinação do presidente da Funai a decisão de rever ou anular procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas, a exemplo do Tekoha Guasu Guavirá, municípios de Guaíra e Terra Roxa (PR), do povo Avá-Guarani, a substituição ou inviabilização de Grupos de Trabalho de identificação e delimitação, a desarticulação ou desconfiguração de Diretorias do órgão indigenista, a perseguição moral a servidores, a manutenção de políticas públicas somente para terras homologadas e, na atual conjuntura, a irresponsabilidade de não equipar, inclusive financeiramente, as coordenações regionais e equipes de base para proteger os nossos povos e territórios dos avanços da pandemia do coronavírus, além de arquitetar o ingresso de pastores fundamentalistas nos territórios indígenas.
Assim, esse governo, subserviente aos interesses econômicos nacionais e ao capital internacional, quer restringir os nossos direitos, principalmente territoriais, ao incentivar o avanço de práticas ilegais sobre as nossas terras, tais como: o garimpo, o desmatamento, a exploração madeireira, a pecuária, monocultivos e a grilagem, que está para ser legalizada por meio da MP 910/19, em tramitação no Congresso Nacional, e ainda a grande mineração e diversos empreendimentos de infraestrutura como hidrelétricas, linhas de transmissão e estradas. Tudo isso, numa clara tentativa de transformar as terras públicas em mercadoria.
Todos esses atos ilícitos e inconstitucionais constituem um projeto de morte para os nossos povos. Eles implicam na destruição das nossas matas, dos nossos rios, da biodiversidade, das nossas fontes de vida, enfim, da Natureza, da Mãe Terra; patrimônio preservado há milhares de anos pelos nossos povos e que até hoje contribui estrategicamente para a preservação do equilíbrio ecológico e climático e do bem-estar da humanidade, prestando importantes serviços ambientais ao planeta.
É esse patrimônio que os ruralistas, o agronegócio e as corporações internacionais querem nos roubar, por meio da restrição ou supressão dos nossos diretos constitucionais, alegando que os nossos direitos originários, e a nossa própria existência, constituem um empecilho para os seus empreendimentos e planos de suposto desenvolvimento. Dessa forma tentam reverter a base legal, nacional e internacional, dos nossos direitos, por meio de medidas como o Parecer 01/17, com a tese do marco temporal, que quer limitar o nosso direito às terras que tradicionalmente ocupamos à 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Carta Magna, que na verdade, só veio a reconhecer um direito que já era nosso, nato, de origem, antes, portanto, da invasão colonial e do surgimento do Estado nacional brasileiro.
O nosso extermínio parece ser uma questão de honra para o governo Bolsonaro, que se aproveitando da crise da Pandemia, acirrou o descaso para com os nossos povos. Assim, também pôs fim às políticas públicas diferenciadas conquistadas por nós nos últimos 30 anos na área da educação, alternativas econômicas, meio ambiente e principalmente da saúde. Após pretender municipalizar ou privatizar o subsistema de saúde indígena, com o fim da SESAI, com a disseminação do coronavírus nos nossos territórios ficou claro que o governo quer mesmo a nossa extinção: não nos protege de invasores, permitindo que estes contaminem as nossas comunidades, o que pode levar a extinção massiva, a começar pelos nossos anciões, fontes de tradição e sabedoria para os nossos povos, principalmente para as novas gerações. E como se não bastasse, o governo estimula o assédio e a violência de interesses privados sobre os nossos bens naturais e territórios sagrados. A recente demissão do diretor de fiscalização do IBAMA após ações repressão ao garimpo em Tis no sul do Pará é bastante elucidativa das intenções do atual governo.
Diante dessa institucionalização do genocídio por parte do governo Bolsonaro, alertamos a sociedade nacional e internacional, reivindicando:
18 Que o Judiciário suspenda todas as proposições de reintegração de posse apresentadas por invasores, supostos proprietários ou empreendedores, contra povos indígenas que tomaram a determinação de retomar as suas terras tradicionais;
Aos nossos povos e organizações dizemos: resistir sempre, com a sabedoria que recebemos dos nossos ancestrais, pelas atuais e futuras gerações dos nossos povos. E que a solidariedade nacional e internacional se intensifique, neste momento de morte, fortalecido pelos descasos do Governo Bolsonaro, e ao mesmo tempo de gestação de um novo tempo para os nossos povos, a sociedade brasileira e a humanidade inteira.
Pelo direito de Viver. Sangue Indígena Nenhuma Gota Mais.
Brasil, 30 de abril de 2020.
XVI Acampamento Terra Livre 2020
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Mobilização Nacional Indígena
Fonte: APIB – CIMI