Projeto incide contra violações de direitos de mulheres encarceradas em Pernambuco

Contemplada pelo Programa de Pequenos Projetos da CESE, iniciativa do coletivo Liberta Elas constrói redes pela não violência contra a mulher no cárcere

A presença majoritária de policiais penais homens nas unidades prisionais femininas de Pernambuco gera situações recorrentes de violência e violações de direitos contra mulheres privadas de liberdade. O coletivo Liberta Elas percebeu as distorções existentes nas unidades prisionais e decidiu incidir pela efetivação da Lei de Execução Penal e Código Penitenciário de Pernambuco, respectivamente, que proíbem a presença de policiais penais homens nas unidades prisionais femininas.

A base legal também conta com o Código Penitenciário de Pernambuco, Lei 15.755 de 2016, em seu artigo 51, que estabelece a necessidade de decreto do governador para regulamentar essa questão. Para atuar diretamente nesse cenário, nasceu o projeto “Construindo redes pela não violência contra mulheres no cárcere”, iniciativa do coletivo contemplada pelo Programa de Apoio a Pequenos Projetos da CESE.

De acordo com Clarissa Trevas, integrante da organização, os homens são maioria no sistema penitenciário feminino, especialmente assumindo a função de Chefia da Segurança. “Não é só nas visitas que fica bem explícito que são os policiais homens que estão circulando pelas células, que são chefes de segurança. Em minha experiência do Liberta Elas, eu só conheci uma policial feminina até o momento” acrescenta.

A ativista explica que já existe uma legislação em Pernambuco, que é o Código Penitenciário de Pernambuco. “No código penitenciário já há afirmação de que esse quadro de policiais dentro das unidades prisionais femininas deve ser formado por mulheres, entretanto não há nenhuma lei explicando como isso poderia funcionar”.

Por essa razão, é necessário um decreto do governador, regulamentando e delimitando percentual mínimo e máximo de policiais masculinos nas unidades femininas. “A ausência desse decreto faz com que sejam descumpridos tanto a Legislação do Estado do Código Penitenciário como a Lei de Execução Penal, que também fala da necessidade da força policial feminina dentro dos presídios destinados às mulheres” acrescenta Trevas.

Mulheres no Cárcere  São vários os relatos de mulheres encarceradas que foram vítimas de assédio, ameaças, violência física, psicológica e sexual. “Muitas mulheres já relataram essa vulnerabilidade em relação aos policiais homens: não se sentirem seguras, de já terem vivenciado uma situação de violência, cometida por estes policiais, ou de já terem ouvido falar do acontecido com alguma colega. Dentro do sistema, existem outras violências do próprio estado do sistema carcerário – o que não é muito diferente do cenário nacional do sistema prisional do país, marcado por um ambiente insalubre: não é grande o suficiente para abrigar todas, não oferece uma alimentação adequada, nem água potável tanto para beber como para tomar banho, apresenta uma superlotação. São tantas pessoas dentro de uma mesma cela, que é necessário fazer revezamento de cama, porque não há colchões suficientes para as mulheres dormirem no mesmo espaço”.

Dentro de um cenário de múltiplas violações de direitos e condições básicas de pessoas no sistema prisional, é importante acrescentar o marcador de raça: de acordo com dados levantados pelo Liberta Elas, 86% das mulheres cumprindo pena no estado são pretas e pardas; 45% delas são jovens e 56% não conseguiram concluir o Ensino Fundamental. Outro número que chama atenção é que 54% das mulheres que estão presas em Pernambuco não foram julgadas – ou seja, elas já estão encarceradas por meses ou mesmo anos, sem mesmo terem a sentença as julguem culpadas.

Segundo o Infopen Mulheres (2018), 1.672 mulheres se encontram sob custódia do Estado em Pernambuco – além das mulheres privadas de liberdade, suas/seus filhas/os, suas mães, irmãs e todas/os as/os familiares que acompanham a pena privativa de liberdade juntamente com sua ente querida, visitando-as e ajudando na manutenção de sua sobrevivência dentro do sistema prisional.

“Nenhuma mulher deveria sofrer violência pelo fato de ser mulher, inclusive as mulheres privadas de liberdade que estão em uma situação de tamanha vulnerabilidade e já vivem sob uma relação de poder dentro do sistema ao qual estão subordinadas, aos agentes penais, homens que tem um poder imenso suas vidas, sobre seu cotidiano.” afirma Trevas. Segundo ela, muitas vezes o debate sobre a situação das mulheres privadas de liberdade se dá pela questão da maternidade, que sem dúvidas é um ponto relevante, mas há outros que contemplam a diversidade das mulheres.

Visibilidade das Violações – No Brasil, já é reconhecido pelo senso comum que o sistema prisional é falho e comete violações. Mas mesmo nos movimentos de defesa dos direitos de mulheres, pouco se olha para a situação das unidades prisionais femininas. Uma ação importante do projeto foi criar espaço para escuta e documentação das experiências de 20 mulheres, que relataram situações de violências praticadas pelos policiais penais dentro das unidades.

O Liberta Elas produziu um documento com esses relatos, transformado numa carta aberta que será divulgada para sociedade civil organizada. O levantamento dos dados está subsidiando a formação da Rede de Luta pela Não Violência contra Mulheres no Cárcere, dedicada a combater a violência contra as mulheres no cárcere através de ações políticas e de incidência junto ao poder público. Através da execução de um plano de comunicação concebido para ação de incidência, a organização vai fazer com que o documento chegue nos meios de comunicação e pessoas responsáveis. A carta aberta também deverá ser distribuída nas filas de visitas e junto a pessoas diretamente ligadas ao cuidado das mulheres, para que se apropriem do documento e dos relatos das sobreviventes dessas violências.

“É muito importante pautar a situação das mulheres privadas de liberdade na sociedade, porque existem várias peculiaridades. Uma delas é a invisibilidade desse sistema, através da censura e do fechamento do cárcere, que se apresenta como um local excluído da sociedade, quando na verdade ele está totalmente relacionado. Porque a prisão é uma encruzilhada, onde várias questões se encontram: o racismo, a questão da classe, a questão da misoginia e a própria questão da violência contra a mulher” aponta a ativista. Uma percepção é que o estado chegou na vida da maioria das mulheres no sistema prisional nunca na garantia de direitos, mas apenas na punição.

Parceria – A equipe da Liberta Elas participou do curso de Incidência Política realizado pela CESE para organizações urbanas, no âmbito do programa Virando o Jogo, com apoio de Misereor.  Esse foi um espaço importante para enxergar a complexidade e diversidade das lutas de mulheres no país hoje. Segundo Trevas, “a formação foi fundamental por trazer conteúdos, novas estratégias, a importância da comunicação e novas pessoas e refletir sobre a nossa própria prática”. A CESE oferece atividades formativas para contribuir no fortalecimento e aprimoramento das organizações parceiras, que ganham mais ferramentas para gerir e captar recursos, qualificar a comunicação e dar visibilidade ao trabalho desenvolvido.

“A CESE desempenha um papel muito importante, quando ela possibilita pequenos coletivos a dar um passo maior no momento de dificuldade, no momento que a gente está enfrentando uma crise mundial. Ela nos auxilia a dar nossos passos de forma mais madura e sólida” conclui a parceira.