Desigualdades de gênero e raça, participação política e auto-organização foram temas discutidos entre mulheres cerradeiras

Oficina sobre Gênero e Raça no Cerrado, promovida pela CESE, reúne mais de 30 mulheres indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais

Facilitação gráfica: Mônica Santana

“Mulheres são como águas e raízes: quando se encontram ficam mais fortes”. Com essa frase inspiradora, a diretora executiva da CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço, Sônia Mota, abriu os trabalhos da Oficina sobre Gênero e Raça no Cerrado, realizada pela entidade, em parceria com agência de cooperação internacional HEKS-EPER, nos dias 03, 04 e 05 de agosto de 2021, através de plataforma on line. Na oportunidade, 33 mulheres quilombolas, indígenas e de comunidades tradicionais trocaram informações e experiências sobre o enfrentamento aos desafios impostos pelo racismo e sexismo.

A Oficina integrou lideranças femininas oriundas do Cerrado de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. De acordo com Olga Mattos, assessora de projetos e formação da CESE,  a entidade vem se colocando o desafio institucional de enfrentar  as questões de gênero e de raça, em diálogo e numa construção conectada com os movimentos, por compreender que essas dimensões  são estruturantes das opressões e das desigualdades na sociedade. Antes, em julho, uma oficina com o mesmo conteúdo foi realizada com guardiãs do Cerrado, da região do MATOPIBA (estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). O encontro também agregou informações sobre gestão de projetos, elaboração e prestação de contas, fortalecendo as demandas das participantes de se instrumentalizar para editais e chamadas públicas.

Facilitação Gráfica: Mônica Santana

A CESE tem investido em uma série de atividades com os grupos do Cerrado, aprofundando o debate em torno do reconhecimento do quanto as opressões vivenciadas no território, pelo poder e força do capital, têm uma relação intrincada com as intersecções de gênero e raça. Do seminário realizado no primeiro semestre, saiu o indicativo de aprofundar as discussões sobre Gênero, Raça e Direitos das pessoas LGBTQIA+. A promoção de ações formativas com recorte e articulação entre classe, raça e gênero está dentro da pauta institucional da CESE. A oficina contou ainda com a facilitação de Rosana Fernandes, assessora de projetos e formação da organização, bem como intervenção de Sarah Luiza, que partilhou a experiência do Grupo de Trabalho Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), articulando as pautas do feminismo ao campo da agroecologia. Também convidada Emília Costa, da Articulação de Mulheres do Cerrado, que partilhou reflexões sobre os enfrentamentos nas comunidades quilombolas, e a solidariedade entre as mulheres negras na vida cotidiana. “As mulheres são habituadas a se reunir para realizar seu trabalho. Ninguém queria ir sozinha pro rio lavar roupa, para quebrar coco, eram juntas. Há muito tempo trabalhamos em coletivo. Para romper as estruturas, nós temos que nos organizar” afirmou Emília, enfatizando a importância da auto-organização das mulheres e dos processos coletivos da gestão dos recursos e estratégias nas comunidades.

Região fortemente impactada pelos grandes projetos do capital, como instalação de hidroelétricas, mineradoras, agronegócio, o Cerrado é um bioma que agoniza com os incêndios criminosos, ataques às comunidades tradicionais e perda do modo de vida dessas populações. As participantes concluíram que a modalidade dos empregos gerados pelas grandes obras é majoritariamente masculina, além de trazerem uma falsa ilusão de desenvolvimento, impactando irreversivelmente a fauna e flora, bem como o bem viver das populações. Também foi destaque a importância da agricultura familiar, das feiras, do extrativismo e do artesanato na renda das mulheres e que muitas vezes essas atividades não são valorizadas.

Facilitação gráfica: Mônica Santana

Para Jaciléia Santos, do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM), o machismo vem ganhando força a partir do quadro político nacional e impactando no cotidiano das mulheres do Cerrado: “quando uma mineradora chega numa cidade, afeta o berço das águas, destrói os pomares, lugares de onde as mulheres tiram seu sustento. Hoje falta terra para plantar e muitas vezes precisamos arrendar para poder plantar um pouco”. Célia Aparecida Silva, também integrante do CAA/NM, concorda e acrescenta: “para nós fica só o prejuízo ambiental e social”.

Além dos efeitos das grandes obras e dos projetos do grande capital, as mulheres também reconheceram que vivenciam o machismo dentro de suas casas e muitas vezes, suas conquistas não são reconhecidas ou “festejadas” pela família e comunidade. Elas apontaram que muitas vezes o dinheiro que conquistam vendendo a produção dos quintais e da agricultura familiar nas feiras é visto com desconfiança pelos maridos e pela comunidade. “A gente faz o mesmo trabalho, mas ganha menos. Se você é preta então, ganha menos ainda. A própria família não acredita no trabalho da mulher.” desabafa Edissônia Benedita, da Comunidade quilombola Cristininha de Caiapônia Goiás.

Mulheres agricultoras – As mulheres agricultoras relataram que a produção da agricultura familiar, que deveria ser priorizada na merenda escolar, é preterida. As escolas públicas municipais compram das grandes empresas e lavouras, não cumprindo as determinações do Plano Nacional de Alimentação Escolar. De acordo com a Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, mínimo 30% do valor repassado a estados, municípios e Distrito Federal pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) deve ser utilizado na compra de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas. Na vivência das mulheres presentes, não tem sido bem assim: “As escolas não adotam os produtos da agricultura familiar e fica aquilo, o dito pelo não dito”, declarou Laura Ferreira da Silva, da Associação da Comunidade Negra Rural Quilombo Ribeirão da Mutuca (ACORQUIRIM). Para ela, com redução das feiras por conta do isolamento social e impactos da ação das mineradoras, a situação foi ainda mais agravada com a falta de reconhecimento e invisibilização dos direitos dos quilombolas. “As desigualdades de gênero e raça asfixiam as comunidades. Vivemos numa pandemia de racismo”.

O aparelhamento do estado e a inversão de papéis das instituições que deveriam garantir a proteção dos povos indígenas foi um dos pontos da discussão. Eliane Xunakalo contou que não há amparo do Estado através da FUNAI. “Quando chegamos nas reuniões com a FUNAI já não contamos com apoio. Os funcionários estão com medo de represálias e segue a intimidação dos povos indígenas sem contar com apoio do Estado” conta a representante indígena.

Como estratégia de reforçar e fortalecer as resistências e o enfrentamento ao racismo e ao machismo no Cerrado, após a oficina, as organizações participantes foram convidadas para a apresentação de uma proposta ao Programa de Pequenos Projetos da CESE, considerando os aprendizados e o intercâmbio de experiências na sessão de elaboração de projetos, como também, os campos temáticos prioritários da organização.