Trabalhadoras domésticas, recicladoras, pescadoras: a realidade do trabalho das mulheres durante a pandemia

A CESE reconhece o contexto de extremas desigualdades sociais, desemprego estrutural e precarização das relações de trabalho sob a lógica neoliberal, que define um modelo de desenvolvimento que desconsidera diferentes modos de vida e aprofunda a segregação étnico-racial e a subordinação das mulheres.

Dando sequência à reflexão iniciada no dia 1º de maio sobre questões da desigualdade social e dos racismos que vem atingindo juventudes e mulheres, principalmente as trabalhadoras domésticas, no universo do trabalho, durante a pandemia de Covid-19, a CESE traz, neste segundo texto, relatos de quatro representantes de organizações sociais sobre a luta de mulheres pela garantia de emprego e renda travada todos os dias.

______________

Em 21 de fevereiro de 2020, a Itália anunciava a sua primeira vítima da Covid-19. Pouco tempo depois, o país se tornaria foco do noticiário mundial por conta do grande número de novos casos e mortes causadas pela doença. De certa forma, é de lá que vem a parcela do vírus que fez uma das primeiras vítimas no Brasil. E ela não poderia ser mais emblemática: uma trabalhadora doméstica infectada pela patroa que havia retornado de lá.

A trabalhadora já prestava serviços há 10 anos na mesma casa, localizada no Leblon, bairro nobre da cidade do Rio de Janeiro. Como ela morava em outro município, a cerca de 100 km dali, passava parte da semana na casa da patroa. Segundo familiares da vítima, a empregadora foi à Itália festejar o carnaval e sequer avisou à funcionária que suspeitava ter contraído o vírus, quando retornou ao Brasil.

Situações semelhantes a estas não tem sido raras durante a pandemia, segundo Creuza Maria Oliveira, presidenta do SINDOMESTICO – Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia. “Patrões e patroas dizem que se a doméstica ficar indo e vindo, pegando ônibus lotado, vai trazer o vírus, mas eles/as mesmos/as continuam indo pra festas, recebendo gente em casa, sem se preocupar com a saúde das funcionárias”, afirma.

Para manter suas fontes de renda, as trabalhadoras acabam aceitando condições impostas por patrões/oas que violam seus direitos. “Muitos/as empregadores/as ainda vêm as trabalhadoras como objetos. Exigem que fiquem confinadas por anos. Não pode adoecer, é como se não tivessem família. Não respeitam direito de ir e vir. Se tiver marido, tá desempregado. Só tem ela pra pagar as contas. Como rejeitar?”, pontua.

Creuza Maria Oliveira, presidenta do SINDOMESTICO – Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia

Creuza afirma que a retirada de direitos das trabalhadoras domésticas vem de desde muito antes da pandemia. “Antes da Reforma Trabalhista, os/as empregadores/as procuravam o sindicato com uma frequência muito maior para fazerem suas rescisões da forma correta. Hoje em dia, essa procura diminuiu. Estão se sentindo seguros/as para não pagar todos valores rescisórios”, denuncia.

Segundo dados da PNAD Contínua – Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua, o número geral de trabalhadoras/es domésticas/es caiu em 2020, quando comparado com o de 2019 – de 6,4 para 4,9 milhões. Desses, 4,5 milhões são mulheres, e 65% delas são negras. A diminuição de 1,5 milhão de postos domésticos representa aproximadamente 18% do total de pessoas que ficaram desempregadas naquele período.

O número de trabalhadoras domésticas com carteira assinada também caiu de 1,6 para 1,1 milhão, enquanto o das que não tinham carteira assinada aumentou de 3,4 para 4,3 milhões de profissionais.  As domésticas negras perderam mais postos do que as brancas – respectivamente 900 mil e 400 mil. Este é, inclusive, um aspecto relatado por Creuza: domésticas brancas têm melhores condições de trabalho do que as negras.

“ As negras sofrem mais assédio moral e sexual. Até mesmo o homem – motorista, caseiro – é mais bem tratado. Quando vai homem lá no sindicato, são poucas as denúncias por violência. As queixas são mais com relação à carga horária”, diz.

Apesar da situação difícil, a luta não para e nem as companheiras se abandonam. O próprio SINDOMESTICO moveu duas campanhas em favor das trabalhadoras durante a pandemia: uma para que elas fossem liberadas do seu trabalho sem perder o emprego, a outra para incluir as profissionais no grupo prioritário de vacinação contra a Covid-19. Em 2020, a CESE apoiou um projeto do sindicato para compra e distribuição de cestas básicas para as trabalhadoras domésticas.

Fotos: SINDOMESTICO / Ação de entrega das cestas básicas às trabalhadoras domésticas

No Ceará, algumas domésticas encontraram solidariedade no MIM – Movimento Ibiapabano de Mulheres. A feira criada por mulheres agricultoras com apoio do Movimento há mais de 10 anos continua desempenhando papel fundamental na cidade de Viçosa do Ceará, na região da Serra de Ibiapaba. Principalmente durante a pandemia. Ela nasce de uma ação conjunta entre essas mulheres, o MIM e algumas organizações locais. A ideia geral era a de proporcionar a essas produtoras a capacidade de auto-organização.

Com a pandemia, tanto as domésticas foram afetadas – em muitos casos, pelo desemprego – como as produtoras, que viram suas vendas despencarem. O MIM aparece bem no meio dessas mulheres, como uma ponte. A partir do apoio financeiro de duas instituições, inclusive a CESE, em três momentos distintos, o Movimento vem trazendo solidariedade para ambos os segmentos desde julho de 2020.

A ação consiste na compra dos produtos agroecológicos das produtoras rurais e na distribuição de cestas básicas para mulheres vulnerabilizadas da zona urbana de Viçosa do Ceará – a escolha se dá por questões de logística, durante a pandemia. Liliane de Carvalho Silva, ativista do MIM, explica que a ação não para por aí. Existem, inclusive, atividades de formação dentro desse processo.

Foto: MIM / Momento de organização das cestas para distribuição às beneficiárias

“Uma das nossas premissas é que as próprias beneficiárias formem as suas cestas básicas, quando vamos fazer a distribuição, para afastar a sensação de aquilo lhes está sendo dado. Por uma questão de autoestima”, relata. Atualmente, 31 mulheres são beneficiárias desta ação, número que representa um aumento, desde a sua primeira realização: eram 20, na primeira, e 25 na segunda etapa. A maioria delas é trabalhadora doméstica.

A entrega das cestas era feita no mesmo lugar, porém em dois momentos distintos, para evitar aglomerações. Liliane conta cheia de orgulho que as formações aconteciam durante a entrega das cestas, debaixo de um pé de acerola. “Nelas, nós abordamos temas como violência doméstica e familiar contra as mulheres, feminicídio, agroecologia, economia solidária, agronegócio, racismo e antirracismo, direitos sexuais e reprodutivos”.

Entretanto, após o agravamento da pandemia na cidade, os grupos tiveram de ser ainda mais reduzidos. Isso fez com que as formações precisassem de um novo formato. E ele veio: logo os panfletos e rodas de conversa deram lugar às ‘Cartas de Cumade’. O MIM passou a enviar áudios às beneficiárias com os conteúdos que costumavam ser conversados nos encontros presenciais e debatê-los em um grupo de whatsapp.

“Percebemos que com o áudio, a interação delas era maior. Durante as rodas, às vezes nem todas tinham tempo de se pronunciar. E também existia uma barreira de leitura. Muitas não leem muito bem. Com o áudio, não existe esse impedimento”, conta Liliane.

A realidade das pescadoras e catadoras

Para muitas pescadoras, a pandemia de Covid-19 veio como sequência de outra uma situação devastadora: o vazamento de óleo que atingiu a costa do nordeste brasileiro em 2019. A apenas alguns meses de completar dois anos do episódio, Maria Celeste de Souza, coordenadora do MPP – Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Piauí, relata que ainda é possível encontrar resíduos daquela substância nas águas do estado.

“Quando a maré fica muito alta e forte, a gente ainda é surpreendido por alguns resíduos que aparecem aqui pela costa”, relata. Ela conta que o apoio dado pelo governo federal após o episódio foi o mesmo dado à época do vazamento: nenhum. “Como não existia um plano de contingenciamento, nós é que tivemos que colocar a mão na massa, em parceria com universidades, o ICMBio. Nos contaminamos para limpar as águas”.

Maria Celeste de Souza, coordenadora do MPP – Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Piauí

Celeste conta que, durante aquele período, as vendas foram afetadas. “As águas ficaram contaminadas e isso afetou diretamente a sustentabilidade alimentar das pescadoras. Fomos impedidas de pescar. Mais de 80% das marisqueiras tiveram suas vendas arriscadas. O povo não queria comprar nosso peixe, o camarão”. E então veio a pandemia. Celeste relata que as vendas novamente foram afetadas.

Ela conta que pescadoras/es estão fazendo doações entre si, durante a pandemia. “Fizemos campanhas para arrecadação de máscara, alimentos, remédios para levar para as comunidades. Eu tenho 66 anos. Quantas vezes eu precisei sair do isolamento pra socorrer gente passando necessidade?”, desabafa a pescadora. Em 2020, a CESE apoiou um projeto do MPP-Piauí para compra e distribuição de cestas básicas.

Mas os desafios não se encerram aí. No dia 13 de fevereiro, pescadora/es e marisqueiras do município de Cajueiro da Praia (PI), no Porto da Lama, tiveram suas pesqueiras – casas utilizadas como armazém de pesca – demolidas, em uma ação promovida pelo Estado. Foram destruídos aproximadamente 20 desses espaços, sem explicações e sem dar oportunidade para todos/as retirarem seus materiais e artefatos de pesca artesanal.

A destruição das pesqueiras contou com escolta da polícia militar. Construções irregulares vêm sendo flagradas em áreas de preservação permanente, no litoral piauiense. Na mesma cidade, manguezais estão sendo desmatados e cercados também em função de especulação imobiliária. Além dos mangues, a região também abriga o berçário do peixe-boi – espécie ameaçada de extinção.

Para as catadoras de materiais recicláveis, a pandemia traz efeitos diretos. Logo no início do surto de Covid-19 no Brasil, muitos/as profissionais largaram seus postos com medo de se contaminarem. Mas o receio não foi embora à medida em que elas/es foram retornando às ruas: o medo agora era de se contaminar através do lixo de famílias que tivessem contraído o vírus.

Foto: CAMAPET / Clarice Cruz, 63 anos, mulher negra, mãe, avó e catadora de materiais recicláveis. “Construí minha casa com dinheiro da reciclagem”, diz a catadora.

Michele Almeida, catadora de material reciclável, presidenta da CAMAPET – Cooperativa de Coleta Seletiva, Processamento de Plástico e Proteção Ambiental, relata que a pandemia trouxe muitos impactos ao trabalho das catadoras. “Outras empresas acabaram se fechando, imagina cooperativa que depende do material reciclável. A quantidade de material reduziu, algumas cooperativas precisaram fechar as portas”.

Ela destaca que conseguir trabalho formal sempre foi uma dificuldade das pessoas para poder arrecadar o seu pão e ter o sustento das suas famílias. “Agora as coisas pioraram. Algumas alternativas que se tinha é ser ambulante ou retirar os materiais recicláveis da rua”.

Michele é uma das milhões de catadoras pelo Brasil que fazem um serviço que quase não é prestado pelo poder público no país. Apesar de catadoras/es serem responsáveis por cerca de 90% de toda a reciclagem feita no Brasil, segundo dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Michele ainda reclama da falta de reconhecimento enquanto profissionais.

Michele Almeida, catadora de material reciclável, presidenta da CAMAPET – Cooperativa de Coleta Seletiva, Processamento de Plástico e Proteção Ambiental

“Já tiramos tantas toneladas de materiais que poderiam ter ido para o aterro, mas ainda assim não somos remuneradas por isso. A prefeitura não reconhece. A vacina, por exemplo, é algo que estamos lutando. Não é só o pessoal que faz a limpeza na cidade que precisa de vacina, nós também somos prioridades. Somos catadores/as, estamos nas ruas, atuando em cooperativas, então, a gente precisa também estar imune”, afirma Michele.

Ela encerra sua fala chamando atenção para o perfil dessas profissionais. “A luta continua. O trabalho não é fácil. É um trabalho de guerreiros/as. A maioria das cooperativadas, que estão na linha de frente do trabalho são mulheres, mulheres negras, chefes de famílias, responsáveis por trazer o pão de cada dia”.

O trabalho e a CESE

Com a política de Direito A Trabalho e Renda, a CESE busca contribuir para garantir condições necessárias para a produção e reprodução da vida, fortalecendo processos de resistência à dinâmica neoliberal e estimulando a construção de alternativas no campo da produção, comercialização e consumo, como a agricultura familiar e camponesa, a agroecologia, a economia solidária e dos setores populares, entre outros.