Como a CESE vê os Direitos Humanos em 2016?

No final dos anos 90, lá pela virada do milênio, em que os movimentos sociais vinham num crescendo, havia nos encontros uma dinâmica – engraçada e pedagógica – que tinha a ver com nossas mais caras utopias: estampar em murais como manchetes de jornal, notícias desconcertantemente positivas, como se o país acordasse no reino de boas novas nas lutas por democracia com justiça. Manchetes como: “Governo desapropria ampla área de latifúndios improdutivos para a Reforma Agrária”; “Congresso questiona tamanho da dívida pública e instala Auditoria Cidadã”, “Condenados os mandantes e executores da Chacina de Eldorado de Carajás”; “Polícia recebe curso de Direitos Humanos e instala ouvidorias nos Estados”; “Governo triplica orçamento do MinC para criar mais 1000 Pontos de Cultura”, “Mulheres negras e brancas alcançam mesmo salário dos homens”; “Equidade – depois de 20 anos, conferência conclui que já não são necessárias cotas raciais”; “Finalmente aprovado o imposto sobre grandes fortunas”; “Saneamento Básico chega a 90% das grandes cidades, decretando o fim da dengue”. “Desmatamento Zero entra no segundo ano consecutivo e FUNAI abre concurso para antropólogos”…

Pois, agora ACORDA-SE COMO NUM PESADELO onde são estampadas manchetes diárias, reais, anunciando perdas de direitos políticos, econômicos, sociais e culturais: “Com a PEC 241 é enorme a chance do Brasil voltar ao Mapa da Fome”; “Temer corta orçamento do Exército que distribui água no Nordeste”, “Governo suspende renovação do programa Aqui tem Farmácia Popular”; “Temer corta quase metade dos recursos das universidades públicas”, “novas regras para aposentadoria vão fazer você trabalhar mais”, “fim da licença maternidade remunerada”, “governo decidirá se candidato que se diz negro em concurso é mesmo negro”. Não acorda amor!

Pode-se imaginar um ano de 24 meses que teve início no final das eleições de 2014 e o anúncio do golpe, há um ano, quando o então deputado Eduardo Cunha, depois de tentar em vão chantagear a Comissão de Ética da Câmara, aceitou o pedido de impeachment da presidente Dilma Roussef. A debandada seguinte do PMDB com 5 ou 6 ministros desapeando do poder até o dramático desfecho no final do fatídico agosto, quando o impeachment é aprovado no Senado Federal consolidou o golpe institucional-midiático. Enquanto a classe média comemorava na Paulista, foi comovente a faixa aguerrida que correu pelas redes – Mulheres com Dilma, as rosas pela Democracia. Não tem como não considerar este o fato político mais relevante do ano e as evidentes implicações para a afirmação dos Direitos Humanos no Brasil.

O caminho de maior desigualdade e a subversão do estado de direito, surgem como agendas anunciadas, o preço que as elites querem impor ao povo brasileiro para superar a crise cíclica do capitalismo. Operações como a Lava Jato esgrimida como ‘mal de raíz’ têm servido historicamente como álibi para senhas de tomadas de poder sempre que se iniciam processos mais profundos ou estruturantes que interessam às demandas populares, tal como aconteceu com Getúlio Vargas e João Goulart e agora na era Lula-Dilma. Impressiona ainda a reincidência do imperialismo dos EUA, sintonia com países imperiais como a história vem confirmando, a exemplo da tentativa de sucateamento da Petrobrás e o retrocesso em relação ao sistema de partilha do Pré Sal, considerada uma das grandes descobertas recentes de reservas da belicosa matéria prima. Além da estagnação da vida econômica pela situação internacional e a desindustrialização provocada na condução desastrada dessas operações, é fato que tudo ficou democraticamente menos consistente, depois das ilegitimidades e arranjos jurídicos cometidos com o impeachment.

Os analistas não escondem que estamos vivendo um Estado de Exceção, como aquela situação neurótica de “suspensão do estado de direito, através do direito”, alternativa para momentos de crise em que se suspende direitos pela via legal. Resta saber em nome de quê, de quem? Também, nem precisavam, já que as populações mais vulneráveis vivem isso no seu dia-a-dia, a exemplo das violações cometidas contra lideranças indígenas, camponesas e outras populações tradicionais. Neste ano merece destaque a surpreendente capacidade de enfrentamento e resistência dos povos indígenas a despeito de condições tão adversas. Foi notável como em poucos dias conseguiram reverter portaria que pretendeu fragilizar ainda mais o serviço de saúde indígena – cerca 11.000 homens e mulheres indígenas de diferentes etnias tomaram estradas em protesto e mantiveram a mesma estrutura da SESAI. Também a destacar a Missão Ecumênica no Mato Grosso do Sul em solidariedade a longa luta dos Guarani Kaiowá pela permanência em suas áreas sagradas – seu ‘tekoa’ – terra e vida.

Do mesmo modo, os estudantes secundaristas que, tal como no ano anterior, têm reagido exemplarmente sintonizados com a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, ocupando cerca de 1.500 escolas, especialmente no sul do país, exigindo abertura de diálogo para discutir a reforma do ensino médio e se contrapondo ao movimento Escola Sem Partido. A novidade, além do aumento preventivo do aparato repressivo, das polícias especialmente truculentas em São Paulo e Paraná – ambos os estados controlados à mão de ferro pelo PSDB, é o envolvimento de grupos extremados de direita nos atos violentos de desocupação, a exemplo do MBL – Movimento Brasil Livre, que se fortaleceram pelo financiamento empresarial nas manifestações pró-impeachment. No cotidiano das periferias, há uma cerca midiática e física para invisibilizar ou naturalizar o genocídio da juventude pobre e negra de nossas cidades, em permanente estado de exceção.

Faz um ano do maior crime socioambiental do Brasil, cometido pela Companhia Vale e seus sócios, a partir de Mariana até a foz do Rio Doce no litoral capixaba, e para os nominados autores sempre há disponível uma infinidade de recursos na tentativa de baixar a moral das populações, subverter decisões judiciais e estabelecer acordos compensatórios com os governantes. A questão da mineração predatória só não esta mais aguda graças a perda de preços das commodities, mas ciente de que esta lógica se imporá no momento seguinte, os movimentos sociais já estão se articulando para resistir e lograr um novo patamar de relações e condicionalidades.

Neste anti-climax, organizações e movimentos sociais, ainda perplexos com anunciadas perdas de direitos e com a velocidade das medidas para consolidar o golpe e retomar ‘a confiança do mercado’, buscam enfileirar-se no enfrentamento de uma pauta comum: a luta contra a PEC 241/55 = “a PEC do fim do mundo”, e as reformas da Previdência e Trabalhista. O arrocho de 20 anos é uma tentativa de retirar os ganhos salariais e outros direitos conquistados nos últimos tempos. O país não está quebrado (porque as reservas internacionais são sólidas) e nem há um descontrole dos gastos. O governo Dilma só em parte é responsável pela recessão quando deu ouvidos ao banqueiro Levy. Com a PEC 241/55, este governo Temer desmonta o combate à pobreza e à desigualdade. Conforme o IPEA, as perdas no financiamento da assistência social chegarão a R$ 868 bilhões. E deixa de enfrentar o gargalo real que é a galopante dívida pública – ela está fora da PEC 55. Foram 400 bilhões em 2015 para alegria dos bancos e que poderiam se transformar em infraestrutura e políticas sociais. Para Philip Alston, relator da ONU para pobreza extrema, esta é uma “medida radical, desprovida de toda nuance e compaixão”.

Nesse contexto, com o processo de criminalização contra entidades, pessoas, movimentos e a própria ‘política’, se articulam intensamente em múltiplos atos de resistência, convencidos de que precisam avaliar critica e autocriticamente a importante experiência nestes últimos 13 anos de governos de centro-esquerda, erros e acertos nas políticas, nos sistemas de alianças, no papel dos partidos, na importância estratégica da luta feminista como valor político de transformação, na urgente atualidade de Reforma do Sistema Político e, principalmente, na construção de um novo “Projeto de Brasil” voltado e a serviço das maiorias.

# NENHUM DIREITO A MENOS!

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