Agosto indígena: o futuro é originário

O mês de agosto de 2021 é crucial para o futuro do Brasil. Não um futuro distante, desses de ficção científica, mas um futuro real, tão básico e imediato quanto acordar um dia após outro e ter a certeza de que haverá oxigênio para respirar e água doce para beber.

No dia 25 de agosto acontece o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng. A ação, relativa a uma área pertencente à Terra Indígena Ibirama-Laklanõ ocupada pelos Xokleng e também pelos povos Guarani e Kaingang, leva em conta a tese do marco temporal, que está sendo discutida atualmente, em âmbito legal, a partir do Projeto de Lei (PL) 490.

O PL 490 é de 2007, de autoria do então deputado federal Homero Pereira, do PR de Mato Grosso. Homero morreu em 2013, mas seu PL foi desengavetado na gestão Bolsonaro. O texto atual é do deputado federal Arthur Maia, do DEM da Bahia.

Entre outros ataques aos direitos dos indígenas, o projeto institui o chamado marco temporal, que determina que só poderão ser consideradas terras indígenas aquelas que já estavam em posse dos povos no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. As novas demarcações, segundo o projeto, só poderão ser feitas com a comprovação da posse, o que hoje não é necessário.

O direito à terra ocupada pelos povos indígenas é um direito originário, ou seja: é anterior à própria criação do Estado e das leis pelo branco. Esses povos já estavam aqui quando os portugueses invadiram Pindorama e inventaram o que hoje se conhece por Brasil.

Além de instituir o marco temporal, o PL também flexibiliza o contato com povos isolados, proíbe a ampliação de terras já demarcadas e permite a exploração das terras indígenas por empreendimentos hídricos, energéticos, pela mineração e pelo garimpo.

O projeto foi aprovado em junho por 41 votos a 20 na Comissão de Constituição e Justiça, e segue para o plenário da Câmara dos Deputados, onde precisa ser aprovado antes de ir para o Senado.

PL 490 e o caso Xokleng

A Terra Indígena Ibirama-Laklanõ ocupada pelos Xokleng foi demarcada em 1996. Os Xokleng afirmam que foram perseguidos e mortos durante décadas pelos brancos, e por isso tiveram que sair do território que hoje tentam retomar.

Como eles, muitos outros povos originários foram e continuam sendo perseguidos. Para sobreviver, são obrigados, desde 1500, a deixar seus territórios tradicionais, a se fragmentar, a se exilar e se esconder, a deixar de falar a língua de seu povo, de praticar seus rituais espirituais, de plantar e colher, de utilizar suas pinturas corporais e mesmo de se identificar publicamente enquanto indígenas.

A histórica expansão da fronteira pelo agronegócio expulsou e deslocou muitos povos indígenas de seus territórios para implantar monoculturas no Cerrado em diferentes estados. O marco temporal atualiza as perseguições coloniais aos indígenas, tornando-as uma sentença de não retorno aos territórios roubados em outros tempos e anistiando os crimes de esbulho cometidos contra esses povos.

Assim tem sido, por exemplo, com o povo Avá-Canoeiro nos seus históricos trânsitos para garantir sobrevivência entre Goiás e Tocantins, e com os Guarani e Kaiowá e os Kinikinau fazendo retomadas de seus territórios ancestrais roubados no Mato Grosso do Sul.

“Em um tempo mais recente, da passagem do século XIX ao XX, e, de forma mais sistemática, desde os anos 1930 e 40, os povos indígenas das diversas paisagens do Cerrado vêm seguindo suas longas rotas de trânsito e constituição territorial de maneira a (sobre)viver diante da violenta expansão dos cercamentos das terras férteis e águas abundantes que habitavam e ajudaram a construir, como nas planícies e vales do Araguaia, ou nas imensas matas de galeria do alto rio Tocantins. Esse é também o caso das terras pretas no Mato Grosso, no Maranhão e em tantas outras áreas dessa imensa região, tida como o epicentro do agronegócio do Brasil, mas que, na verdade, é o coração pulsante de tantas culturas indígenas. Muitas áreas, que se transformaram nos latifúndios do Centro-Sul do país e, hoje, do chamado Matopiba, se interpuseram e deslocaram tantos povos indígenas, aproveitando-se da biodiversidade e da riqueza da terra que eles ajudaram a fecundar”, escrevem Marcela Vecchione, Antonio Verissimo da Conceição, Laudovina Aparecida Pereira e Roberto Antonio Liebgott no artigo “Povos Indígenas do Cerrado: caminhando e cultivando r-existências diversas”.

O êxito da tese do marco temporal tornaria as históricas violências genocidas contra os povos originários um fato consumado. E em uma região tão devastada como o Cerrado, a tese do marco temporal é especialmente perniciosa.

Em 2019, o STF deu status de repercussão geral ao processo da ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng. Isso significa que o que for definido no julgamento de 25 de agosto servirá de diretriz para o governo federal e todas as instâncias da justiça em procedimentos de demarcação de terras indígenas.

Portanto, uma decisão favorável ao povo Xokleng poderá ajudar a barrar o desmonte pretendido pelo atual governo federal com o PL 490. Até este momento, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), mais de 160 mil pessoas assinaram uma carta aberta ao STF manifestando sua posição contrária ao marco temporal, e pedindo que a Corte proteja os direitos constitucionais dos povos indígenas.

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Foto: Edson Prudêncio/APA-TO

O tempo como cerca

A tese do marco temporal é uma “guerra jurídica em torno do tempo”, defendem os autores do artigo “Povos Indígenas do Cerrado: caminhando e cultivando r-existências diversas”. Esta guerra reproduz as estratégias coloniais de expropriação e apagamento dos povos originários usadas pelos primeiros invasores europeus.

Em 1500, como não podiam provar sua posse sobre as terras que acabavam de tomar – pelo simples fato de que aquelas terras já estavam ocupadas pelos povos originários –, os invasores portugueses se anteciparam a registrá-las em papel, prática estranha aos habitantes daquele lugar. A primeira grilagem das terras dos povos originários está documentada na carta datada de 1º. de maio de 1500 pelo escrivão Pero Vaz de Caminha, na qual ele noticia ao rei de Portugal “o achamento desta Vossa terra nova”. Com o documento fraudulento, vieram também a escravização dos originários, os assassinatos, os estupros, os genocídios dos povos, as cercas, as leis e mais documentos escritos ao longo dos séculos dando outros nomes aos saques e violências para legitimá-los – sesmarias, expedições, aculturamento, integração, progresso, desenvolvimento.

O marco temporal, esta guerra jurídica em torno do tempo que se quer utilizar como uma nova cerca por cima das outras tantas já instaladas pelos descendentes dos primeiros invasores, parte da mesma estratégia de 521 anos atrás: escolhe-se um elemento estranho à existência dos povos originários e transforma-se esse elemento em único e verdadeiro critério a determinar quem é o dono da terra.

O tempo é uma invenção. O que existe, de fato, é o movimento. O tempo é a tentativa de domesticação e encapsulamento do movimento. E é nesta cápsula diminuta, datada de 5 de outubro de 1988, que os defensores do marco temporal querem confinar movimentos contínuos e imemoriais dos povos originários.

Uma luta do mundo

Por isso, o mês de agosto de 2021 é crucial para o futuro do Brasil, e também do mundo. Um futuro tão básico e imediato quanto acordar um dia após outro e ter a certeza de que oxigênio, água e alimento não nos faltarão. É tarefa do mundo – principalmente dos não-indígenas – defender a permanência dos povos originários em suas terras ancestrais.

E o que essa defesa tem a ver com oxigênio, água e alimento?

Tudo.

Basta dizer que há quase dois anos vivemos imersas/os na pandemia de um vírus que já matou mais de quatro milhões de pessoas em todo o mundo, e que na raiz dessa pandemia está, entre outros fatores, o desequilíbrio causado pelos desmatamentos que favorecem o agronegócio, a monocultura, a grilagem, a exploração mineral e o latifúndio. Historicamente, onde há devastação ambiental, há expulsão e morte dos povos originários e de comunidades quilombolas e tradicionais. São os modos de vida e relação de proteção e co-dependência desses povos para com os demais seres vivos que garantem, desde sempre, as matérias-primas básicas da vida humana: oxigênio, água doce e alimento.

A preservação do Cerrado pelos povos originários e tradicionais têm especial relevância para esse futuro básico e imediato. Segunda maior região ecológica da América do Sul e savana mais biodiversa do planeta, o Cerrado é o berço das águas e de muitos povos e culturas. No entanto, mais da metade de sua cobertura vegetal foi devastada para dar lugar, sobretudo, a monocultivos e pastagens para o agronegócio. Há um ecocídio em curso contra o Cerrado, e a iminência da extinção desse bioma nos próximos anos. Sem o Cerrado não há água; sem água não há vida.

E como se não fosse o bastante, ainda há a dimensão histórica que coloca sobre cada não-indígena o dever de defender os direitos dos povos originários. É preciso reconhecer que o Brasil é uma invenção colonial, assentada no saque e na violência perpetrados pelos invasores europeus – e continuados pelos seus descendentes brasileiros – contra os povos originários de Pindorama.

O mês de agosto nos abre uma oportunidade: a de que o Brasil comece a devolver a Pindorama o que vem lhe roubando há 521 anos.


 Foto do topo: Aktxawã Junior / Acampamento Luta pela Vida

Fonte: https://www.campanhacerrado.org.br/noticias/305-o-futuro-e-originario