Audiência pública sobre Rio dos Macacos termina com impasse entre Marinha e comunidade quilombola

A relação conflituosa entre as moradoras e os moradores remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos (Simões Filho, Grande Salvador) e a Marinha do Brasil foi pauta da audiência pública realizada nesta quarta (28), no Ministério Público Federal, em Salvador (BA).

Na ocasião, o comandante da Base Naval de Aratu reiterou a proposta de que um portão seja instalado no muro que dividirá a área quilombola da área da Marinha, restringindo o acesso ao rio pela comunidade. Uma das alternativas colocadas pelo representante da Marinha foi que os pescadores e pescadoras da comunidade de Rio dos Macacos se cadastrem para que possam ter acesso às águas. “A partir do momento em que a gente tiver uma estrada e livre acesso de qualquer pessoa, um terceiro pode ter acesso a barragem e fazer algum tipo de delito. A gente está aqui para conseguir um denominador comum para todo mundo e não só flexibilização por parte da Marinha, a Marinha cedendo e a comunidade não cedendo em aspecto nenhum”, avaliou o Comandante.

Já a comunidade discorda da alternativa apresentada. “A gente não pode permitir esse portão, colocar de novo pras mulheres serem estupradas [que já aconteceu ali em cima] e várias violências que já ocorreram ali porque a gente foi pegar água. Não podemos aceitar aquele muro, que vai destruir a nossa comunidade, as nossas vidas completamente. Eu quero ser um defunto, mas eu não vou carregar na alça do caixão de uma das minhas filhas e de nenhum do meu povo dentro da comunidade”, posiciona-se Rose Meire Silva, uma das lideranças de Rio dos Macacos.

Rose pondera que a comunidade não é exatamente contra o muro, mas repudia a forma como ele será feito. “A gente pode aceitar esse portão, colocando do outro lado. A gente não quer o domínio da barragem, a gente quer o uso compartilhado da água. Você falou certo, foi a Marinha que construiu aquela barragem, mas a Marinha fez a barragem fazendo nossos pais trabalhar como escravos pra poder carregar aquelas pedras, falando que ia dar água à comunidade e ao Subúrbio de Salvador e existe documento comprovando isso”, atesta.

A exigência de se ter certificação profissional de pesca esbarra em outros pontos, para além da dificuldade em se conseguir o documento. Isso porque moradores e moradoras da comunidade também encontram na pesca apenas uma forma de subsistência, sem viés de comercialização. “Água é vida, as águas têm que ser respeitadas, as pessoas precisam ser respeitadas também e ninguém precisa de credencial pra fazer sua referência às águas”, acrescenta Olinda Oliveira (uma das lideranças locais), fazendo menção às expressões de fé que que se fazem junto àquelas águas.

Sobre o acesso à água pela comunidade, Júlio César de Sá da Rocha (UFBA) é categórico. “Existe racismo institucional histórico nesse caso”. E emenda. “Não existem águas privadas. Se existe uma barragem em um território, ela tem que atender a seus usos múltiplos”, referindo-se à lei 9433/97, que é a Lei das Águas. Não existe água da Marinha, as águas são bens de caráter difuso, portanto disponibilizados a atender os seus usos múltiplos, sob pena da Marinha estar violando o direito legal da Política Nacional de Recursos Hídricos”.

A audiência pública foi fruto da demanda da comunidade e de organizações que apoiam a luta  o Quilombo Rio dos Macacos, que exigem a conclusão do processo de titulação, além, de resolução de questões que envolvem a garantia da infraestrutura e acesso a políticas públicas, o respeito à liberdade de ir e vir, o acesso às fontes de águas e o uso compartilhado do Rio dos Macacos barrado pela Marinha do Brasil, dentre outros temas que diretamente envolvem a efetivação dos direitos fundamentais.

O conflito, iniciado com a invasão do território quilombola pela Marinha no final dos anos 50, é marcado por um histórico de agressões, ameaças, práticas de tortura, destruição do potencial econômico da comunidade, violação a direitos sociais e expulsão de diversas famílias que habitavam o território há gerações, se arrastando até os dias atuais, onde, mesmo com o reconhecimento pelo Poder Público do direito da comunidade ao território, criam obstáculos À conclusão do processo, com a definitiva titulação do território tradicional.

Estiveram presentes representantes do Quilombo Rio dos Macacos, do Comando da Base Naval de Aratu, Defensoria Pública da União, Ouvidoria da Defensoria Pública da União, Fundação Cultural Palmares, INCRA, Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia – Sepromi, Universidade Federal da Bahia, Associação de Advogados de trabalhadores – AATR, CESE, dentre outras organizações públicas e da sociedade civil.