CESE realiza oficina em Barreiras para discutir gênero, raça e conflitos por água no Cerrado

“A gente ouve o barulho do rio daqui. Mas também ouve o das máquinas e cada um deles machuca.” A fala é de uma das lideranças da comunidade de Beira Rio, em São Desidério (BA). Há anos, aquele povo luta contra a instalação de uma Pequena Central Hidrelétrica que quer desviar aproximadamente 80% da água do Rio Grande para o lucro de uma única empresa, ignorando a existência das populações ribeirinhas da região.

A comunidade foi uma das visitadas pelo grupo que participou da oficina “Nas Corredeiras das Resistências: gênero e raça nos territórios do Cerrado”, realizada em Barreiras pela CESE em parceria com Agência 10envolvimento e apoio e HEKS-Eper e Pão para o Mundo, de 9 a 11 de maio. O objetivo da atividade foi promover um espaço de reflexão sobre os impactos do racismo, machismo e capitalismo nas regiões de Cerrado do MATOPIBA, além de conhecer melhor os conflitos por água nesses territórios.

Em todas as falas, desde o intercâmbio do grupo com a comunidade de São Desidério aos debates feitos durante a oficina, ficou clara a atuação do Estado contrária aos povos e comunidades tradicionais dessas regiões. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) obriga os governos a consultarem esses povos em casos como o dessa PCH, mas as lideranças ribeirinhas de Beira Rio relatam que isso não aconteceu.

Em 2013, técnicos do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) emitiram uma notificação comunicando a inviabilidade do empreendimento e indeferindo o pedido de licença de localização, ressaltando seus impactos socioambientais. Contudo, o próprio Inema publicou, meses depois, uma portaria concedendo uma Licença Prévia. Somente em 2018, a empresa responsável conseguiu uma Licença de Implantação. Um ano depois, quando ela começou a alugar residências em uma comunidade vizinha para alocar funcionários/as, foi que as comunidades tomaram conhecimento da instalação da PCH.

Casos diversos foram relatados durante a oficina. As queixas se concentram principalmente na falta de fiscalização, onde um/a pequeno/a pescador/a é punido/a severamente, caso corte um pequeno trecho de manguezal, mas o Estado libera a destruição massiva dos territórios para os grandes empreendimentos. Estratégias para excluir as comunidades dos debates também foram denunciadas.

Em crítica à instalação de um estaleiro em uma cidade baiana, a marisqueira Vânia Conceição Sacramento, da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), denuncia que as audiências públicas para debater a obra eram realizadas de madrugada para evitar que as pessoas participassem. Fernanda Souza, da Associação de Pescadores Artesanais da Bacia do Rio Grande, classifica como “grilagem de águas” o que acontece com os/as ribeirinhos/as.

Wagner Kraho Kanela relata que as águas dos rios que banham a Terra Indígena do seu povo vão todas para dentro das lavouras e voltam de lá envenenadas pelos agrotóxicos despejados de avião. Uma participante de Correntina aponta vários casos em que grileiros vendem as terras das pessoas das comunidades, que descobrem o golpe apenas quando recebem a notícia de que sua casa está hipotecada.

Wagner Kraho Kanela

Gênero e Raça nos territórios do Cerrado

No dia 11, quatro mulheres foram convidadas a compartilhar suas experiências e percepções sobre a importância da luta das mulheres para a manutenção do Cerrado em pé e para a sua sociobioviversidade. A quilombola Camila Pereira dos Santos, do Quilombo Barra do Parateca, a indígena Luciana Kiriri, da Aldeia Kiriri Barreiras, Conchita Silva, do Coletivo de Mulheres pelo Cerrado do Oeste da Bahia, e Beatriz Blackman, da Rede de Mulheres Negras para Soberania Segurança Alimentar e Nutricional (RedeSSAN).

Camila é a presidenta da associação de sua comunidade e lidera um trabalho com mulheres voltado para a agricultura familiar. Ela conta que esse processo se iniciou com duas mulheres, mas hoje já são 35 fazendo parte do grupo. No geral, são mulheres que enfrentam questões pessoais fortes e por isso mesmo é que o principal destaque que ela traz sobre a trajetória delas é a autonomia conquistada.

“Tudo começa do pequeno, né? Foi assim com elas. A gente já vê a transformação, na renda de suas famílias, que aumentou. No início, era uma conquista para elas poderem comprar um creme para suas filhas, pagar um exame com o dinheiro do seu próprio suor. São coisas pequenas, mas que nos proporcionam uma visão ampla, de que elas podem conseguir mais, a partir da agricultura familiar. Quando você tem autonomia, você se apodera do que é capaz”, pontua Camila.

Conchita falou sobre as diferentes formas de luta e resistência que as mulheres e que existe uma falácia de que elas não participam dos enfrentamentos. “Nos cadernos de ‘Conflitos do Campo’ da CPT sempre é dito que as mulheres são as primeiras atingidas, porque elas ficam nos territórios. Um colega meu teve que sair da cidade por conta de ameaças. Sua mãe ficou e era assediada por grileiros, recebia polícia. Isso não é luta?”

Em um relato colhido de um jornal antigo, Conchita resgata o caso de uma senhora que deixou um bebê de dois meses cair dos seus braços ao ser surpreendida por um grileiro que invadiu sua casa a cavalo – o bebê veio a falecer depois do episódio – e mais uma vez questiona: “Isso não é luta?”.

Luciana conta que não só a aldeia Kiriri Barreiras hoje é liderada inteiramente por mulheres como foram elas que lutaram para conquistá-lo. “Em um momento crucial para a regularização da aldeia, na reta final, as mulheres se uniram e tomaram a frente da situação, impondo sua autoridade também os homens. Hoje nós estamos à frente de tudo, as mulheres têm seu próprio artesanato e renda para participarem das mobilizações.”

Além de fazer uma reflexão sobre os corpos das mulheres serem os seus primeiros territórios, Beatriz fez uma provocação para os homens sobre como anda o debate sobre gênero por parte deles. “Esses espaços geralmente trazem o ponto de vista das mulheres porque historicamente nós fomos silenciadas, mas como os homens constroem esse pensamento? Como discutem de forma séria em suas rodas?”.

E complementa. “Nosso corpo enquanto mulheres é nosso primeiro território. E a gente vai proteger eles, e precisamos que nossos companheiros também estejam nessa luta. Não faz sentido defender a terra e atacar esse outro território – que são nossos corpos.”

Nas Corredeiras das Resistências

A oficina “Nas Corredeiras das Resistências: gênero e raça nos territórios do Cerrado” contou com participação de grupos, organizações, movimentos e algumas redes do Cerrado dos estados de Maranhão, Piauí, Bahia e Tocantins. A oficina foi conduzida por Olga Matos e Marcella Gomez, ambas assessoras de Projetos e Formação da CESE, e por Amanda Silva, agente de desenvolvimento da ONG Agência 10envolvimento.

Em outro momento da formação, os grupos também discutiram os principais enfrentamentos e estratégias de resistência e articulação que têm marcado suas atuações em suas comunidades. Além disso, o debate também focou questões de Terra e Território, Território das Águas, Juventude e Políticas Públicas.