Dia Mundial do Meio Ambiente: Proteger nossa Casa Comum com direitos socioambientais, terra, água e território!

Para defendermos nossa Casa Comum e o Bem Viver, é fundamental enfrentar as desigualdades e garantir a agenda de direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais enraizadas em seus territórios.  Essa é uma avaliação que vem de gente que tem sua ancestralidade na terra, a conhece, ouve e sente suas dores. O Dia Mundial do Meio Ambiente é momento de enfatizar e fortalecer essas lutas.

Após 49 anos Conferência das Nações Unidas de Estocolmo para debater as questões ambientais, o cenário é complexo para o mundo e ainda mais para o Brasil. Uma pandemia descontrolada, incêndios florestais que extinguem, ano após ano, nossa Amazônia, Cerrado e Pantanal; recordes de conflitos no campo conforme dados da publicação da CPT – Comissão Pastoral da Terra, Conflitos no Campo Brasil 2020; e, em meio a tudo isso e muito mais, a boiada segue passando, como expôs o ministro investigado do Meio Ambiente no Brasil, Ricardo Salles.

Para a CESE a distribuição desigual da terra e da água é o elemento central que expressa as relações de poder no Brasil. Desde sua fundação, tem apoiado as lutas nesse campo, considerando toda a diversidade que ele comporta. Neste mês de junho, traz informações e relatos de como o aumento do desmatamento, desrespeito às leis e a falta de punição para infratores afetam o bem viver dos segmentos mais vulneráveis da população, no campo e na cidade.

Neste primeiro texto, trazemos um olhar sobre o grave e cada vez menos tímido avanço do agronegócio sobre a Casa Comum ao longo dos últimos anos, mas também uma mensagem de esperançar. Afinal, nossas crenças e espiritualidades também nos dão força para seguirmos na luta.

Resistência secular

Os territórios dos povos indígenas e comunidades tradicionais, local de vida e de conservação da biodiversidade, têm sido constantemente atacados, e não por acaso. Essas populações, que secularmente convivem com o meio ambiente, são as verdadeiras guardiãs dos locais mais conservados no País. E guardar esses locais de vida não é tarefa fácil, é enfrentar atores poderosos, conflitos de todos os tipos – desde ameaças verbais a massacres -, grandes projetos econômicos transnacionais e de infraestrutura que passam por cima dos territórios.

Dona Isabel Rodrigues é quilombola da Comunidade Barra da Aroeira, localizada entre os municípios de Santa Tereza, Lagoa do Tocantins e Novo Acordo, a aproximadamente 100 km de Palmas, capital do Tocantins. Ao todo, 120 famílias vivem na comunidade e a produção por lá é farta: arroz, milho, mandioca, feijão, abóbora, hortaliças, frutas, criação de galinhas e porcos, extrativismo do pequi, buriti, bacaba, barú, capim dourado e muitos outros produtos.

Mas toda essa diversidade de vida, presente em uma região onde o agronegócio se alastra de forma acelerada, assim como em inúmeros outros lugares no Brasil, está sob ataque e em conflito.  Durante os 15 anos em que se arrasta o processo de regularização do território da comunidade no Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, os invasores se movimentam rapidamente.

“A derrubada destrói tudo. Todas essas sujeiras que são trazidas pelo desmatamento vão tudo para dentro dos córregos. Os córregos só trazem poluição. Chegou a um ponto de gente adoecer por causa da grande derrubada. Além de destruir mais de 10 mil pés de pequi, tudo que se tinha, que era na época da colheita, era uma geração de renda”, afirma Dona Isabel.

Segundo levantamento da plataforma MapBiomas, os satélites do Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais identificaram, entre janeiro e dezembro de 2019, que o desmatamento chegou a atingir mais de 600 hectares na comunidade, fazendo de Barra da Aroeira o território quilombola mais desmatado naquele ano.

O caso da comunidade é um dos que compõem o Dossiê Agro é Fogo: grilagens, desmatamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal, que conta com apoio da CESE e HEKS EPER e foi lançado em abril. O documento agrega denúncias e análises sobre inúmeras formas de devastação ambiental e de conflitos por terra. Mas os ataques aos direitos das populações tradicionais se manifestam de várias formas.

Conflitos por terra, água e território

Segundo dados da publicação Conflitos no Campo Brasil 2020, os conflitos pela água na última década apresentaram uma curva ascendente, aumentando mais de sete vezes, com agravamento a partir de 2018. O campo brasileiro passou de 69 ocorrências, em 2011, para 502, em 2019, maior número contabilizado. Em 2011 foram contabilizadas 28.057 famílias envolvidas nesses conflitos; em 2019, esse número praticamente triplicou, chegando a 79.381 famílias.

Capa da publicação da CPT – Comissão Pastoral da Terra, Conflitos no Campo Brasil 2020

Moisés Borges, integrante do MAB – Movimento de Atingidos por Barragens, denuncia a forma como as multinacionais apropriaram-se da água dos rios, secaram nascentes e suprimiram a vegetação de Correntina, município localizado no oeste da Bahia. “A empresa Igarashi destruiu o Cerrado e passou a consumir mais do que toda população da cidade. Fizemos denúncias e relatórios com parceiros para mudar a situação. Mas, diante da omissão do Governo do Estado, a população ficou revoltada. Essa revolta foi de indignação e legítima. E a resposta do Governo foi através de abusos da Polícia Militar”, relata.

Abraço simbólico em defesa do Rio Arrojado, em Correntina/BA – Missão Ecumênica ”Pelas Águas do Oeste da Bahia”.

Missão Ecumênica ”Pelas Águas do Oeste da Bahia”, em Correntina/BA

A violência contra os mananciais de água, rios, córregos e nascentes vai além do envenenamento com agrotóxicos ou da construção de grandes obras de infraestrutura. Em plena pandemia, em setembro do ano passado, destruíram mais de 1 hectare de manguezal na Ilha de Maré/BA. “Quando soubemos, o Inema – Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos – tinha licenciado um projeto da empresa Bahia Terminais”, afirma Marizelha Lopes, liderança da comunidade e do MPP/BA – Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais.

Foto arquivo: Movimento dos Pescadores e Pescadoras/BA

O mesmo documento da CPT aponta que as invasões em territórios originários tiveram um crescimento exponencial entre 2019 e 2020. Segundo a publicação, o número total de famílias vítimas de invasões passou de 40.042 em 2019 para 81.225 em 2020 – um aumento de 102,85%. Se considerado o incremento das famílias indígenas impactadas entre 2018 e 2020, o percentual é ainda mais assustador: 295%. Dessas mais de 80 mil famílias vítimas de invasões em 2020, 58.327 são indígenas, 71,8%. Em 2019, essa porcentagem foi de 66,5% (26.621) e em 2018, 50,1% (14.757). Entre os anos de 2019 e 2020, o desmatamento nas Terras Indígenas chegou à marca de 89.769,8 hectares. Essa perda significativa de vegetação nas TIs nos dois últimos anos é um indicativo grave de invasão com o objetivo de exploração ilegal dos recursos naturais e de apropriação fundiária.

Porto Velho RONDONIA_ Imagem aérea de gado em área desmatada próxima a Porto Velho. 07 de agosto de 2020. (Foto Bruno Kelly/Amazônia Real)

No Pará, mais precisamente no município de Itaituba, a liderança indígena Alessandra Korap, do povo Munduruku do Médio Tapajós,  vencedora do Prêmio de Direitos Humanos Robert F. Kennedy Human Rights, afirma que a etnia sofre há muito tempo com as queimadas e grilagens de terras públicas.

“De 2019 para cá nós estamos sofrendo muitos ataques, um atrás do outro. Aqui, por exemplo, os projetos, que já vêm de muito tempo, simplesmente vão querendo sair do papel se nós indígenas, quilombolas e ribeirinhos não se aliar e se juntar cada vez mais para defender os seus territórios, o rio e a Amazônia em geral”, pontua Korap.

Sônia Guajajara, indígena do Maranhão e coordenadora executiva da Apib – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – manifesta que o que está em jogo para os povos indígenas e comunidades tradicionais não é somente a luta por direitos, mas sim pela vida. “Por isso não podemos ser coniventes com uma política que pensa um progresso a partir da destruição. Nós não vamos permitir isso, vamos continuar na luta, lutando pela vida. Porque se a gente morre calado, a gente morre duas vezes: porque perde o direito e a vontade de lutar”, enfatiza.

Sônia Guajajara, indígena do Maranhão e coordenadora executiva da Apib – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil

(R)existir e Esperançar

Sônia Mota, Diretora Executiva da CESE, pontua que a organização se inspira no simbolismo das narrativas da criação que apontam para as relações fundamentais que o ser humano deve cultivar – de harmonia, integralidade e interdependência. “Temos o desafio de contribuir para construir um modelo ambiental sustentável, social e economicamente justo, além de culturalmente diverso.”

Ela também enfatiza o compromisso da CESE em contribuir para promover a harmonia na oikoumene. “O nosso compromisso é o cuidado com o planeta, e com todos os seres que nele habitam, mas em especial com os povos indígenas e de outras comunidades tradicionais; com aqueles e aquelas que se encontram em estado de extrema vulnerabilidade por causa da ação humana desproporcionada sobre o meio ambiente”.

A CESE apoia iniciativas dos movimentos sociais e organizações populares em defesa da Casa Comum. As lutas das guardiãs e guardiões do meio ambiente nos dão energia e alimentam nossa esperança num mundo menos desigual. A inspiração e o esperançar para a continuidade das lutas se mantêm firmes na atuação de mulheres como Dona Isabel Rodrigues, da Comunidade Barra da Aroeira, e Marizelha Lopes, de Ilha de Maré.

Ambas trazem falas e sentimentos que se complementam. Para Isabel “uma vara sozinha é fácil de quebrar, umas três ou quatro é mais difícil”. Já para Marizelha, “não dá para enxergar o meio ambiente sem nós, que somos guardiãs dele”.

Texto de Elvis Marques com a contribuição de Tarcilo Santana