Dossiê aponta presença de agrotóxicos na água de sete comunidades tradicionais do Cerrado

Iniciativa da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a publicação conta com a parceria da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e já está disponível em formato digital para download

A Campanha Nacional em Defesa do Cerrado lançou hoje, 30/05, a publicação “Vivendo em territórios contaminados: Um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado”. O material apresenta os resultados da “pesquisa-ação” implementada, entre 2021 e 2022, em sete territórios do Cerrado e que realizou análises toxicológicas e ambientais sobre a qualidade das águas em comunidades dessas localidades. Na maioria dos casos, as amostras de águas coletadas e analisadas pela pesquisa são oriundas de nascentes, córregos e rios que abastecem as comunidades, sendo utilizadas para a irrigação de plantações, consumo animal e, em algumas situações, também para o consumo humano. As comunidades que fizeram parte da pesquisa situam-se nos estados do Tocantins, Goiás, Maranhão, Piauí, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Bahia, em regiões do Cerrado e de zonas de transição com a Amazônia e o Pantanal.

A publicação é uma iniciativa da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz  (Fiocruz). A pesquisa em campo contou com o apoio de agentes da CPT de Tocantins, Goiás, Maranhão, Piauí e Mato Grosso do Sul, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no Mato Grosso e da Agência 10envolvimento, na Bahia.

BAIXE AQUI O DOSSIÊ

DESTAQUES

Os resultados da investigação foram apresentados na manhã de hoje durante evento presencial em Brasília. Participaram da atividade membros das comunidades que participaram da pesquisa, reprepresentantes da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, da CPT, da Fiocruz, além de representantes do sistema de Justiça, como o defensor público estadual Pedro Alexandre Gonçalves, do Tocantins, o promotor do Ministério Público Estadual (MPE) no Mato Grosso do Sul Marco Antonio Delfino, a promotora do MPE na Bahia Luciana Khoury, Marina Mignot Rocha, do GT de Garantia à Segurança Alimentar e Nutricional da DPU (Defensoria Pública da União), e Sandra Maria da Silva Andrade, representando a CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) e CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos).

 Durante a exposição dos resultados, alguns dados mereceram destaque:

  • O glifosato foi detectado em todos os estados no qual a pesquisa-ação foi realizada. Essa substância foi proibida pela Autoridade Europeia para Segurança dos Alimentos (EFSA) devido à ausência de evidências suficientes para estabelecer limites de segurança para exposição crônica, mas segue autorizada no Brasil;
  • O metolacloro, um dos agrotóxicos encontrados na pesquisa, além de ser proibido na União Europeia, é suspeito de ser desregulador endócrino e sua exposição está associada ao aumento da incidência de tumores, em particular hepáticos, aqueles associados ao fígado, além de ser considerado perigoso para o meio ambiente;
  • O fipronil, também encontrado nas pesquisas, tem como alvos primários o sistema nervoso, a tireoide e o fígado, e foi classificado pela USEPA como um possível carcinógeno humano devido à ocorrência de tumores na tireoide. Esse Ingrediente Ativo também está associado a milhares de casos de intoxicação em humanos, incluindo graves, que evoluíram para óbito;
  • O terceiro agrotóxico mais detectado nas análises foi a atrazina, presente em todos os estados em ao menos um ciclo, à exceção do Mato Grosso. No Maranhão, os níveis de atrazina detectados na comunidade de Cocalinho foram mais de 2 vezes superiores ao valor máximo permitido segundo as normativas brasileiras.
  • Dos oito agrotóxicos identificados e quantificados durante a pesquisa-ação, quatro estão entre os 10 mais comercializados no Brasil em 2021. O glifosato ocupa a primeira posição, sendo seguido do 2,4-D (2a posição), da atrazina (5a posição) e do metolacloro (10a posição).

Mariana Pontes, assessora da Campanha e uma das organizadoras da publicação, explica que o dossiê combina diferentes movimentos metodológicos. “Foram realizadas a revisão de literatura especializada sobre agrotóxicos e as análises laboratoriais, além da contribuição dos conhecimentos tradicionais das comunidades que estão, cotidianamente, enfrentando os impactos dos agrotóxicos que poluem às suas águas e envenenam os seus roçados”, explica.

Os resultados apresentados no dossiê são alarmantes, aponta Mariana. “Mais de 10 tipos de agrotóxicos foram identificados nas análises de coleta de água, um dado que não nos surpreende, mas preocupa muito, uma vez que milhares de pessoas, das sete comunidades que participaram da construção da pesquisa, possuem suas vidas diretamente impactadas por estes produtos que são extremamente tóxicos para a saúde humana”, destaca a assessora.

Para Aline do Monte Gurgel, da Fiocruz, uma das autoras da pesquisa, é preciso desnaturalizar a ideia de que existe um nível tolerável de agrotóxicos que podemos consumir nas águas e nos alimentos. “Se eu colocar uma gota de veneno em um copo d’água, quem vai querer beber essa água? A gente precisa partir do pressuposto de que o nível aceitável de agrotóxico nas águas é zero, então qualquer número maior que zero já indica contaminação. Na Europa, há agrotóxicos cujo limite máximo permitido nas águas é 30 vezes menor do que o limite máximo permitido no Brasil. Isso significa que nosso corpo é mais forte que o do europeu? Não. Significa que nossa legislação é menos protetiva”, alertou a pesquisadora.

COMUNIDADES

As comunidades participantes da pesquisa foram definidas a partir de diálogos coletivos envolvendo as organizações participantes da Campanha Cerrado e que atuam com o tema dos agrotóxicos. Fizeram parte do estudo o Território Tradicional da Serra do Centro, em Campos Lindos, no Tocantins; Comunidades Tradicionais Geraizeiras de Formosa do Rio Preto, na Bahia; a Comunidade Barra da Lagoa, em Santa Filomena, no Piauí; o Acampamento Leonir Orback, em Santa Helena, Goiás; o Território Quilombola Cocalinho, em Parnarama, no Maranhão; o Assentamento El Dourado II, em Sidrolândia, Mato Grosso do Sul; e a Comunidade de Cumbaru, Nossa Senhora do Livramento, no Mato Grosso.

Os pontos de coleta foram definidos de acordo com sua importância para as comunidades, sendo em águas utilizadas para irrigação de roças e quintais, na pesca, na dessedentação animal, nas brincadeiras e recreação das comunidades, no uso doméstico, como a lavagem de roupas e louças, e na alimentação, seja para beber ou cozinhar. Foram coletadas amostras nos seguintes tipos de fonte: rio/riacho/córrego, nascente, lagoa, brejo, açude/represa, cacimba/poço e águas das residências das comunidades

Durante o lançamento, representantes das comunidades do Maranhão, Mato Grosso do Sul, Piauí e Bahia revelaram as violências sofridas diariamente pelas mãos de empresários do agronegócio que despejam agrotóxico sobre seus corpos e territórios diariamente. Foram relatos de graves alergias na pele, perda de produção da agricultura familiar, doências respiratórias crônicas, contaminação de rios e poços de água e ocorrência cada vez maior de casos de câncer – e mortes por câncer – nas comunidades. “Tive uma alergia muito forte, com bolhas na pele. Quando fui ao médico pedir pra fazer exame e ver se era por conta do agrotóxico, o médico logo disse que não era, disse que aquilo era escabiose (sarna)”, relatou uma liderança quilombola do Maranhão. O remédio receitado pelo médico não funcionu. No depoimento de outro representante de comunidades, o relato sobre o aparecimento de bolhas se repetiu, assim como o “diagnóstico” de escabiose por médico do hospital público local. “É claro que os médicos não vão falar que tem a ver com o veneno, porque eles também têm negócios no agro da nossa cidade, eles são do agronegócio também”, revelou agricultor.

VIVENDO EM TERRITÓRIOS CONTAMINADOS

Mais de 1.800 agrotóxicos foram liberados para uso nos últimos quatro anos (entre 2019 e 2022) no Brasil. Cerca de metade destes agroquímicos não são permitidos na Europa por oferecerem riscos à saúde humana e ao meio ambiente. Hoje esses produtos, comumente combinados com a utilização de sementes transgênicas, são utilizados ostensivamente nas lavouras do país, via pulverização terrestre e aérea, impactando não somente o ar, as plantações, as águas, a terra e a biodiversidade, mas povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. 

Todos esses povos – que resistem em seus territórios há séculos – lutam para sobreviver em uma verdadeira guerra química promovida pelo agronegócio e pelos grandes latifúndios de monoculturas de produção de commodities para exportação. No Cerrado, este cenário é ainda mais violento: mais de 70% dos agrotóxicos utilizados no país são consumidos na região, de acordo com o estudo “Ecocídio nos Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e contaminação por agrotóxicos”, publicado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Por Campanha Nacional em Defesa do Cerrado