A Kunhaguê Aty Guasu (Assembleia das mulheres) Guarani e Kaiowá teve início na noite do dia 18 de setembro no tekoha Kurusu Ambá, em Coronel Sapucaia (MS), com uma forte reza tradicional das mulheres Guarani e Kaiowá. Mais de 200 tons de vozes femininos eram ouvidos naquele momento, além do som dos mbaracas e takapu’s que entoavam os rituais religiosos na abertura deste importante espaço de reencontro, rezas, conversas, sonhos e expectativas.
Na vida do povo Guarani e Kaiowá tudo tem uma explicação espiritual. Era possível perceber esta relação em todos os momentos da Aty Kunã, desde a acolhida dos participantes até as horas do pouso. Entre os barracos construídos pela comunidade para as pessoas de fora e as barracas levadas para o acampamento, era nítida a alegria expressada no Guaxiré (dança tradicional) que acontecia todas as noites. Era maravilhoso acordar no meio da noite com os cantos e perceber que mulheres, homens e jovens seguiam de mãos dadas dançando nas grandes e animadas rodas de suas danças tradicionais.
Era um encontro de muitas energias positivas, a Kunhaguê Aty Guasu contou com representantes de quase todos os Tekoha – lugar onde se é – Guarani e Kaiowá do sul de Mato Grosso do Sul, representantes do povo Terena do norte do estado, assim como representantes do Conselho Continental da Nação Guarani e do povo Mbya Guarani das aldeias Terra Roxa, no Paraná, e Tenondé Porã, em São Paulo.
A Aty Kunã atraiu várias organizações ligadas aos direitos humanos, movimentos sociais e universidades, representantes da ONU mulheres-Brasil, Ministério Público Federal (MPF), FIAN Brasil/internacional, Cese, movimento da Liga das Camponesas Pobres, movimento de mulheres, Comitê de apoio e solidariedade aos povos indígenas, CTV, UEMS, FAIND, entre outras, prestigiaram e contribuíram com este lindo encontro.
Frente ao cenário politico que o Brasil vem enfrentando, onde o objetivo principal é a retirada de direitos humanos, temas como Terra, saúde, educação, trabalho, segurança, benefícios sociais, saneamento básico, autonomia e fortalecimento das lutas dos povos indígenas fizeram parte de todas as discursões da grande assembleia.
Em destaque estava a questão da luta pelo território. Infelizmente, nos últimos anos as iniciativas anti-indígenas têm se intensificado no Brasil. Michel Temer, para se manter no cargo de presidente da República, tem sido “todo ouvidos” aos interesses do agronegócio nacional e internacional. Articulado com os poderes Legislativo e Judiciário, o governo federal vem tentando criar propostas totalmente favoráveis aos interesses do capital, como é o caso da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere a responsabilidade de demarcar terras indígenas do poder Executivo (Funai) para o poder Legislativo (Congresso Nacional), onde pelo menos 300 deputados são ou estão aliados ao ruralismo.
Outra pauta abordada sobre a questão da terra foi a tese do Marco Temporal, uma iniciativa que vem se firmando cada dia mais no poder Judiciário brasileiro, onde as disputas são intensas em torno da interpretação do texto constitucional. Ruralistas e alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) defendem que os povos indígenas só teriam direito aos seus territórios se estivessem sobre eles em 5 de outubro de 1988.
Os Guarani e Kaiowá afirmaram durante a Aty Kunã que o marco temporal, antes mesmo de virar lei, já vem causando muito sofrimento para as comunidades indígenas neste estado. A Terra Indígena Guyraroka, desde 2014, vem enfrentando este mal: a portaria que declarava os limites da aldeia foi anulada pela 2ª turma do STF e, em 2016, o processo transitou em julgado. A posição inconstitucional de Gilmar Mendes preponderou, com a decisão de que, como a terra não estava na posse dos indígenas em 1988, eles não terim direito a ela.
A terra sem mal dos Guarani e Kaiowá parece se distanciar cada vez mais. Outras cinco áreas indígenas do estado de Mato Grosso do Sul sofrem com o efeito desta tese.
Mesmo com todas estas atrocidades contra a vida destes povos, os Guarani e Kaiowá seguem resistindo – prova disso foi a organização e realização deste Aty Kunã. As mulheres Guarani e Kaiowá, devido à falta de recursos financeiros da Funai, conquistaram junto à sociedade e organizações parceiras cada grão de arroz servido durante a Aty. Isso demostra que não é uma tese ou PEC que vai destruir a esperança e a Mbarete (força) destes povos.
A sabedoria das mulheres indígenas ficou explícita na condução da assembleia. Elas conseguiram transformar o encontro em um espaço de trocas de experiência entre os anciões, crianças e jovens, rezadoras e rezadores, que puderam partilhar cantos, rezas, medicinas tradicionais, Risos, Sonhos, Vida.
“A Aty Kunã é o espaço para os rezadores e pra Nhande Si, isso é ótimo, o povo Guarani e Kaiowá precisa da reza. Tem que continuar a Aty Kunã, as crianças, os rezadores junto, isso faz vim a chuva boa, a planta boa, a mandioca, o milho branco e a gente faz o batizado da criança”, afirma Ivone Argemiro Jorge, da Aldeia Panambizinho, em Dourados (MS).
Mulheres, homens, jovens, Nhande Si (nossa mãe) e Nhande Ru (nosso Pai), afirmam que vão seguir avançando ao encontro de seus tekoha tradicionais, de saúde e educação de qualidade, de respeito e reconhecimento de valores e de seus modelos de vida alternativos para o planeta. “Se o governo não concluir a demarcação de nossas terras, vamos continuar retomando nossos tekoha, nós mesmo vamos demarcar as nossas terras”, ressalta Leila Rocha, liderança do tekoha Yvy Katu, localizado em Iguatemi (MS).
A Kunhãgue Aty Guasu encerrou no dia 22 de setembro com a seguinte certeza: o caminho da terra sem mal é longo, mas será concluído pelos guerreiros e guerreiras do povo Guarani e Kaiowá. Enquanto houver o som do Mbaraca e do Takuapu, vai ter luta.
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Texto e fotos por Lídia Farias de Oliveira, do Regional Cimi MS