Seminário discute impactos e resistências que permeiam as mudanças climáticas no Cerrado

Estabelecimentos rurais de agricultura familiar são maioria no Brasil, mas suas terras são infinitamente menores que as do agronegócio

Em 2006, o Censo Agropecuário já nos dava um panorama visceral de como o agronegócio sempre foi beneficiado pelo estado brasileiro. No Tocantins, os estabelecimentos rurais que não operavam dentro da lógica da agricultura familiar representavam apenas um quarto do total desses pontos no estado. Entretanto, a área ocupada por essa minoria correspondia a 81,32% do total de hectares que todos os estabelecimentos rurais do estado possuíam. A terra de agricultores/as familiares não representava nem 20%.

O censo mais recente, realizado em 2017, mostrou o avanço do agronegócio: além dos maiores pedaços de terra, agora 30% dos estabelecimentos rurais do Tocantins estão nas mãos do agro. Não é segredo quem são os “proprietários” desses latifúndios e qual é o seu modus operandi. Estabelecimentos rurais “de agricultura não familiar” possuem terras infinitamente maiores, apesar de serem minoria em números absolutos, e os danos que esse modelo de desenvolvimento vem causando aos biomas, aos povos e comunidades tradicionais que vivem neles e ao mundo inteiro são extremamente graves.

Kátia Penha, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), foi quem trouxe essas informações para o debate. Ela foi uma das/os convidadas/os do Seminário Virtual “Cerrado e Mudanças Climáticas: impactos e resistências”, realizado pela CESE nos dias 21 e 22.

O encontro debateu acerca de questões como “que mudanças têm sido observadas nos ciclos das águas e a que se devem essas mudanças (o quê e quem) Mudanças ocorridas nos ciclos de produção das águas, das sementes, nos tempos? e o que tem provocado esses desequilíbrios?

Kátia trouxe dados que mostravam que, apesar de serem minoria em número absoluto de estabelecimentos, grandes empresários do agronegócio estão entre os maiores responsáveis pela destruição do meio ambiente e lucram com essa devastação. “Os 10% mais ricos emitem 50% do gás carbono – o agro, a pecuária, a mineração, a especulação imobiliária. Enquanto isso, a falta d’água, as enchentes, as queimadas e os maiores impactos da pandemia, consequências dessa destruição, afetam os mais pobres.”

Emílio Apinajé, que também foi convidado a falar no seminário, contou sobre as mudanças que seu povo tem observado nos ciclos da água que fazem parte da comunidade. Ela cita uma empresa que se instalou nas proximidades da aldeia e vem fazendo derrubadas, plantando monoculturas de soja e eucalipto. “O veneno que eles jogam contamina nossos rios. Isso tá trazendo preocupação pro povo Apinajé. O riacho fica dentro da nossa aldeia. Antes era cheio, mas de uns tempos pra cá, tá cada vez mais diminuindo. Secando aos poucos.”

Kátia enfatiza que os povos e comunidades tradicionais não representam um perigo para o meio ambiente, pelo contrário. “Agricultor familiar produz também nas áreas, a gente não agride. A gente quer o Cerrado aqui. A gente vive a consolidação entre ser humano, natureza, tradições. Nós precisamos, enquanto povos, entender o sistema agrícola brasileiro onde nós estamos porque é desesperador.”

Gecilha Crukoy Krahô se preocupa ao ver os rios secando cada vez mais e seus povos perdendo o direito de estarem em suas terras. “Quilombola, camponês, negros. Teve muita gente que correu com medo de morrer, deixou suas terras, e hoje quer voltar e tão falando que nós não temos direito sobre ela. Como é que nós que somos sementes, brotos dessa terra, não temos direito sobre elas    pra poder dormir e viver em paz, fazer nossas comidas naturais?”.

A indígena se recusa a abrir mão dos modos de vida que herdou de seus ancestrais. “Dentro do Cerrado a gente precisa do bacuri, do pequi, do ingá, do puçá, do coco, disso tudo. Eu quero que todo mundo esteja de barriga de cheia, nas suas festas, na sua cultura, satisfeita. Será que acabando tudo, como vão ficar? Vai virar santo? Ninguém vai comer, banhar? Eu quero que meus netos se banhem, vão no mato, peguem uma abelha, uma arapuá pra poder comer. É isso que é a cultura dos mais velhos e eu não quero deixar os jeitos dos meus tataravôs. Eu quero que o branco respeite a gente.”

Cerrado e Mudanças Climáticas

O seminário contou com participação de representações de organizações de estados diferentes. Assim como em seus modos de viver, também com nas lutas e resistências esses povos e comunidades tradicionais encontram semelhanças entre si. Os relatos de mudanças observadas em seus territórios frequentemente se encontravam diante dos mesmos problemas.

Lugares que costumavam ser mais frios ou quentes agora enfrentam temperaturas invertidas. Rios, córregos, riachos e até mesmo nascentes secando cada vez mais, vítimas de um clima alterado, de um solo envenenado e infértil. As chuvas agora são imprevisíveis e isso afeta o resultado das colheitas. As pessoas estão doentes, as florestas derrubadas, os animais queimados, o lucro do agro sobrepondo as tradições dos povos.

Além de Gecilha, Emílio e Kátia, também foram convidados/as o indígena Leosmar Terena, que é biólogo e mestre em Desenvolvimento Local em Contexto de Territorialidade; Kátia Gomes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Samuel Britto, da Comissão Pastoral da Terra; e a géografa e educadora popular Andréia Maciel, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).

Lançamento de edital de apoio a projetos

Durante o seminário, a CESE também lançou o Edital de apoio a projetos “Povos do Cerrado enfrentando as Mudanças Climáticas: Direitos Territoriais e Sistemas Alimentares”. A iniciativa visa contribuir com povos indígenas, comunidades tradicionais, extrativistas, ribeirinhas, camponesas, quilombolas, mulheres, juventudes, entre outros, nos seus processos de defesa dos direitos territoriais e de fortalecimento de sistemas alimentares, no âmbito do Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (MATOPIBA).

A inscrições seguem abertas até o dia 24 de julho. Associações, movimentos sociais, redes e articulações, grupos de base comunitária, coletivos, grupos informais, organizações baseadas na fé (igrejas, terreiros, etc.), entre outras, podem concorrer ao edital. As organizações interessadas devem encaminhar as propostas exclusivamente para o e-mail editais@cese.org.br. O apoio financeiro será de até 30 mil reais, os projetos devem atender aos objetivos do edital e os critérios do processo seletivo e ser executados no ano de 2022, com duração máxima de até três meses.

Clique aqui para baixar o edital de apoio a projetos: Povos do Cerrado enfrentando as Mudanças Climáticas: Direitos Territoriais e Sistemas Alimentares

Clique aqui para acessar o roteiro de elaboração de projeto;

Clique aqui para acessar as orientações para elaboração de projeto.